“O quilombo tem 500 anos de luta e construção política no Brasil”, diz pesquisador

0
1729
Foto de EBC - Quilombo - Divulgação
Foto de EBC – Quilombo – Divulgação

Natalia da Luz, Por dentro da África

PS: ENGLISH VERSION IN THE END 

Lembrados pela referência ao período do tráfico transatlântico (séculos 16 ao 19), que trouxe cerca de 5 milhões de africanos escravizados para o Brasil, os quilombos representam ainda hoje, em 2018, um espaço de construção de resistência social e política.

“Estamos falando de 500 anos de luta e construção política. Nesse processo de 500 anos, o quilombo não foi liberto pela Lei da Abolição (1888), pela Lei do Ventre Livre (1871); o quilombo se auto libertou no século 21”, disse o pesquisador Diosmar Santana Filho, autor de “A geopolítica do Estado e o território quilombola no século XXI”.

Antes de continuar a entrevista para o Por dentro da África, Diosmar recitou alguns trechos do poema ‘Insônia’, do poeta José Carlos Limeira.

“Saudades das tuas noites, 
Fogueiras que eu não vi,
Palmares, Estado Negro…
(Vivo pensando em ti)
Por mais que eu conte a história
Não te esqueço, meu povo
Se Palmares não vive mais
Faremos Palmares de novo.”

Ilustração do Quilombo dos Palmares – Palmares -Rugendas

Palmares, em Alagoas, é o quilombo mais conhecido do Brasil. Formado no final do século 16 por escravos fugidos das fazendas de cana-de-açúcar da região, ele chegou a abrigar mais de 20 mil pessoas. Seu líder, Zumbi dos Palmares, um dos símbolos de resistência da escravatura no Brasil, é lembrado em 20 de novembro (Dia da Consciência Negra), data em que foi assassinado, no ano de 1695.

Assista ao vídeo abaixo:

“Estamos no século 21 com uma agenda do século 16, mas não temos que manter o quilombo no passado. Temos que tratar o quilombo como história recente. Isso porque muitos deles são oriundos do final do engenho, no século 19, ou seja, essas histórias são modernas e contemporâneas”, apontou o geógrafo, professor e coordenador acadêmico do curso de pós-graduação Estado e Direito dos Povos e Comunidades Tradicionais da Universidade Federal da Bahia (UFBA).

O estudo sobre o território quilombola no século 21 foi feito em escala nacional, com destaque para o estado da Bahia. No estudo, Diosmar usou como ponto de partida o Decreto 4887, assinado em novembro de 2003, quando a União estabeleceu um conjunto de políticas para os territórios quilombolas que deveria ser desenvolvido e aplicado até 2012.

Em 2004, o governo estabeleceu o programa ‘Brasil Quilombola’, com o objetivo de consolidar os marcos da política de Estado para essas áreas. Com o seu desdobramento, foi instituída a Agenda Social Quilombola (Decreto 6261/2007), com ações ligadas ao acesso à terra, infraestrutura e qualidade de vida, por exemplo.

Nesse caminho pós-Decreto 4887, ainda no primeiro governo de Luiz Inácio Lula da Silva, Diosmar lembra que alguns temas não foram aprofundados no debate como o reconhecimento do quilombo urbano porque, geralmente, o senso comum quando pensa em quilombo, busca referências rurais.

Quilombo Camorim, no Rio de Janeiro – Natalia da Luz – UNIC

“O quilombo do Leblon estava na zona urbana e nobre do Rio de Janeiro, ora! O processo histórico de exclusão cria inverdades sobre esses espaços. Não podemos esquecer de que o quilombo, atualmente, é uma dimensão em construção. Abdias Nascimento fortaleceu a ideia do quilombismo (mobilização política da população afrodescendente nas Américas com base na sua própria experiência histórica e cultural).

Terra-patrimônio

“A sociedade está em um espaço político, de conflito permanente. Não podemos achar que a terra está fora disso, a terra significa patrimônio e, no Brasil, esse patrimônio é capitania hereditária*. Se é capitania hereditária, isso explica quando vemos as mesmas famílias ocupando esse mesmo território há séculos”, alertou.

Em sua pesquisa de mestrado na UFBA, Diosmar estudou 421 comunidades na Bahia que foram certificadas entre 2004 e 2012. De todas essas, apenas 6 tinham a titularidade da terra. Neste processo longo e burocrático, a certidão é o que o autor chama de primeiro território, porque, a partir deste momento, o espaço passa a ser considerado (oficialmente) uma comunidade. A certidão também promove um conjunto de políticas públicas porque permite que os municípios façam captação de recursos junto ao governo federal.

Quilombo no Vale do Ribeira (SP) Foto de EBC

“Em Salvador, por exemplo, há cinco comunidades certificadas. O município faz a captação no Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação Básica (FUNDEB), para o programa de alimentação escolar quilombola, com base na Lei 10.639/2003, mas a comunidade não sabe para onde vai o recurso. A certidão gera captação de recursos que, muitas vezes, não vai beneficiar a comunidade”, explicou Diosmar.

Depois da certificação (realizada pelo Fundação Cultural Palmares) obter a titularidade é o desafio da vez, existem mais de 40 procedimentos administrativos no INCRA, e isso pode levar uns 10 anos para ser concluído. Em seguida, a população enfrenta novos obstáculos, como o plano de desenvolvimento do território quilombo.

Com o processo na escala nacional de certificação, o número de comunidades saltou de 95, em 2004, para 1.748, em 2012. Entre 1995 e 2009, foram titulados 193 territórios quilombolas, representando uma média anual de 5,8 títulos emitidos em benefício de 11,4 comunidades tituladas.

“Tá, alcançou o título, mas não se pensa no processo de desenvolvimento. E aí o quilombo termina sendo um produtor para essa sociedade capitalista. Palmares produzia e levava seus produtos – existia a troca, o comércio. Os quilombolas de hoje estão isolados desse processo”, afirma o professor.

Racismo

“As populações indígenas e quilombolas não estão para sustentar o capitalismo moderno, elas estão vivendo a época da globalização, buscando outro ordenamento, outra dimensão. Ser indígena, ser quilombola é um enfrentamento”.

De certa forma, o Estado reconhece o racismo institucional e estrutural; o Supremo Tribunal Federal reconheceu a constitucionalidade das cotas raciais e isso tem impacto na dimensão quilombola. Em 2010, a maioria da população (51%) se autodeclarou negra no Censo; em 2020, Diosmar lembra que saberemos o número da população negra quilombola no Censo, o que vai gerar um impacto na construção de políticas públicas.

“O racismo está em permanente ação de genocídio da população negra, e a população negra está em permanente ação de promover a democracia pela dimensão étnico-racial. O movimento das mulheres negras tem produzido isso, o movimento dos quilombolas é parte disso”.

“Terra pra quê?”

Marcello Casal Jr/Agência Brasil

Uma parte importante da história do Brasil é muito negligenciada, apagada. Nas escolas e nos veículos de comunicação, pouco aprendemos sobre as essências indígena e africana do país. Os indígenas, que em 1.500 eram 5 milhões, hoje, são 900 mil. O genocídio e epistemicídio (destruição dos saberes) dessas populações estão presentes nesses 500 anos.

“A história de olhar uma pessoa negra no Brasil é olhar que ela é improdutiva, insolente. As leis reforçavam a ideia de que o negro e o indígena eram um atraso ao desenvolvimento do país e que essa população negra e indígena tinha o dever de ser produtiva. Por que o dever de ser produtivo para um Estado que me nega?”.

A tomada de terra das populações indígenas (um processo que começou em 1500 e ainda está em curso) e o abandono dos descendentes de africanos escravizados após a Abolição da Escravatura em 1888 são indissociáveis da desigualdade presente na sociedade brasileira atual.

“Alguns dizem: ‘Mas o meu avô alemão chegou aqui sem nada em terras brasileiras, trabalhou e venceu’, e eu respondo: ‘Meu tataravô chegou aqui acorrentado, escravizado, sem nada, não recebeu terra, foi abandonado pelo Estado e eu estou aqui, sem nada. Meu tataravô produziu para você ter a sua terra hoje’”.

O exemplo do professor é bem didático ao recordar que os ascendentes partiram de situações completamente distintas e cruelmente desiguais. Esse exemplo mostra que é necessário um esforço de políticas públicas e de toda a sociedade para que seja possível amenizar tantas disparidades.

Ataque, genocídio, epistemicídio

Pergunto a Diosmar sobre os desafios, não mais técnicos, mas subjetivos, para pensar nos quilombolas nos dias de hoje. Ele chama atenção para o fortalecimento das relações entre campo e cidade, para a valorização da própria comunidade, principalmente na escola.

“O professor de geografia de hoje não está ensinando o que é o ambiente, o lugar, a terra onde nasceu aquele aluno. Está ensinando o que é São Paulo e de São Paulo para algum lugar do mundo que esse jovem não vai alcançar. A bibliografia, de certa forma, ajuda a destruir muitos dos saberes. Atualmente, esse modelo de educação está, na maioria das vezes, direcionado para fazer Enem e não para a formação”.

A mídia quando negligencia o racismo e os abusos contra as populações indígenas para preservar muitos de seus anunciantes, não contribui para informar a população sobre aspectos importantes que merecem destaque.

“É preciso lembrar que as redes sociais não são tão democráticas quanto parecem. Está cada dia mais mapeada em grupos que defendem interesses fortes. Como pode sair um relatório dizendo que um jovem negro é assassinado a cada 23 minutos e isso não vira um debate político às vésperas das eleições? Estamos vivendo o aprofundamento do silêncio sobre Marielle Franco, depois dela quantos jovens foram assassinados?

 ENGLISH VERSION

“The quilombo has 500 years of struggle and political construction in Brazil”, says researcher

Remembered by the reference to the period of the transatlantic slave trade (16th to 19th centuries), which brought about 5 million Africans enslaved to Brazil, quilombos represent today, in 2018, a space of construction of social and political resistance.

“We are talking about 500 years of struggle and political construction. In this 500-year process, the quilombo was not freed by the Law of Abolition (1888), by the Law of Free Womb (1871); the quilombo set itself free in the 21st century, “said researcher Diosmar Santana Filho, author of” The Geopolitics of the State and the Quilombola Territory in the 21st Century. ”

Before continuing the interview to Inside Africa, Diosmar recited some parts from the poem ‘Insônia’, by the poet José Carlos Limeira.

“I miss your nights,
Bonfires I have not seen,
Palmares, Black State …
I live thinking of you
As much as I tell the story
I do not forget you, my people
If Palmares does not live longer
We will make Palmares again. ”

Palmares, in Alagoas, is the best-known quilombo in Brazil. Formed at the end of the 16th century by slaves escaped from sugarcane farms in the region, it was home to over 20,000 people. Their leader, Zumbi dos Palmares, one of the symbols of resistance of slavery in Brazil, is remembered on November 20 (Black Consciousness Day), the date on which he was assassinated, in the year 1695.

“We are in the 21st century with a 16th century agenda, but we do not have to keep the quilombo in the past.We have to treat the quilombo as a recent history, because many of them come from the end of the engenho in the 19th century, histories are modern and contemporary, “said the geographer, professor and academic coordinator of the post-graduation course State and Law of Peoples and Traditional Communities of the Federal University of Bahia (UFBA).

The study of quilombola territory in the 21st century was done on a national scale, with emphasis on the state of Bahia. In the study, Diosmar used as a starting point Decree 4887, signed in November 2003, when the Union established a set of policies for the quilombolas territories that should be developed and implemented by 2012.

In 2004, the government established the ‘Brasil Quilombola’ program, with the objective of consolidating the State policy frameworks for these areas. With its deployment, the Quilombola Social Agenda (Decree 6261/2007) was instituted, with actions related to access to land, infrastructure and quality of life, for example.

In this way, Decree 4887, still in the first mandate of Luiz Inácio Lula da Silva, Diosmar reminds us that some subjects were not deepened in the debate as the recognition of the urban quilombo because, generally, common sense when thinking of quilombo, searches for rural references.

“The Leblon quilombo was in the urban and in the South zone of Rio de Janeiro. The historical process of exclusion creates untruths about these spaces. We can not forget that the quilombo is currently a dimension under construction. Abdias Nascimento strengthened the idea of ​​quilombismo (political mobilization of the Afro-descendant population in the Americas based on their own historical and cultural experience).

Earth-equity

“Society is in a political space of permanent conflict. We can not think that the land is outside of it, the land means patrimony, and in Brazil, this patrimony is hereditary captaincy. If it is a hereditary captaincy, this explains when we see the same families occupying this same territory for centuries, “he warned.

In his master’s degree at UFBA, Diosmar studied 421 communities in Bahia that were certified between 2004 and 2012. Of all of these, only 6 had land ownership. In this long and bureaucratic process, the certificate is what the author calls the first territory, because, from this moment on, space is considered (officially) a community. The certificate also promotes a set of public policies because it allows municipalities to raise funds from the federal government.

“In Salvador, for example, there are five certified communities. The municipality funds the National Development Fund for Basic Education (FUNDEB) for the quilombola school feeding program, based on Law 10.639 / 2003, but the community does not know where the resource will go. The certificate generates funding that will often not benefit the community, “explained Diosmar.

After the certification (carried out by the Palmares Cultural Foundation) to obtain the title is the challenge of the time, there are more than 40 administrative procedures in INCRA, and this can take about 10 years to complete. Then the population faces new obstacles, such as the development plan of the quilombo territory.

With the nationwide certification process, the number of communities jumped from 95 in 2004 to 1,748 in 2012. Between 1995 and 2009, 193 quilombola territories were titled, representing an annual average of 5.8 titles issued for the benefit of 11.4 titled communities.

“Okay, reached the title, but you do not think about the development process. And then the quilombo ends up being a producer for this capitalist society. Palmares produced and brought its products – there was the exchange, the commerce. Today’s quilombolas are isolated from this process, “says the professor.

Racism

“The indigenous populations and quilombolas are not to support modern capitalism, they are living the era of globalization, seeking another order, another dimension. Being indigenous, being a quilombola is a confrontation. ”

In a sense, the state recognizes institutional and structural racism; the Federal Supreme Court recognized the constitutionality of racial quotas and this has an impact on the quilombola dimension. In 2010, the majority of the population (51%) declared themselves black in the Census; in 2020, Diosmar reminds us that we will know the number of the quilombola black population in the Census, which will generate an impact in the construction of public policies.

“Racism is in permanent action of genocide of the black population, and the black population is in permanent action to promote democracy by the ethno-racial dimension. The black women’s movement has produced this, the quilombola movement is part of that”.

Racism is in permanent action of genocide of the black population, and the black population is in permanent action to promote democracy by the ethno-racial dimension.

Land for what?

An important part of Brazil’s history is much neglected, erased. In the schools and in the media, we learned little about the indigenous and African essences of the country. The Indigenous people, who in 1,500 were 5 million, today, are 900 thousand. The genocide and epistemic demio (destruction of the knowledge) of these populations are present in those 500 years.

“The story of looking at a black person in Brazil is to see that it is unproductive, insolent.
The laws reinforced the idea that the black and the indigenous were a delay to the development of the country and that this black and indigenous population had a duty to be productive. Why the duty of being productive to a state that denies me? ”

The land grabbing of indigenous peoples (a process that began in 1500 and is still ongoing) and the abandonment of African descendants enslaved after the Abolition of Slavery in 1888 are inseparable from the inequality present in today’s Brazilian society.

Some say, ‘But my German grandfather came here with nothing on Brazilian soil, worked and won,’ and I reply: ‘My great-great grandfather came here chained, enslaved, with nothing, landless, abandoned by the state and I am here, with nothing. My great-great-great-grandfather produced for you to have your land today. ‘”

The teacher’s example is well didactic in recalling that the ascendants came from completely different and cruelly unequal situations. This example shows that an effort is needed in public policies and in society as a whole so that disparities can be mitigated.

Attack, genocide, epistemicide

I asked Diosmar about the challenges, not more technical, but subjective, to think about the quilombolas these days. He draws attention to the strengthening of relations between the countryside and the city, for the valorization of the community itself, especially in the school.

“Today’s geography teacher is not teaching the environment, the place, the land where that student was born. He is teaching what São Paulo and São Paulo are to some place in the world that this young man will not reach. Bibliography, in a way, helps to destroy many of the knowledge. Today, this model of education is mostly directed toward doing Enem and not training. ”

The media, when it neglects racism and abuses against indigenous populations to preserve many of its advertisers, does not contribute to inform the population about important aspects that deserve to be highlighted.

“You have to remember that social networks are not as democratic as they seem, they are increasingly mapped in groups that defend strong interests, how can a report say that a young black man is murdered every 23 minutes and this is not a political debate on the eve of the elections? We are living the deepening silence about Marielle Franco, after how many young people were murdered?