‘Africanidades e Educação’, uma pesquisa de Ademir Barros dos Santos

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1892
Iustração de griot disponível em http://www.sofundamental.com
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Ademir Barros dos Santos, Por dentro da África 

Introdução

A expansão territorial europeia, iniciada nos primórdios do século XVI, trouxe, consigo, o ideal de disseminação da cultura ali desenvolvida como única em condições de levar o mundo ao desenvolvimento da excelência social.

Com esta visão, sua cultura foi imposta aos povos encontrados, como hegemônica e como padrão universal, em detrimento de todas as outras com que se confrontou; isto, via de regra, por considerá-las inferiores ou atrasadas, relegando-as a segundo plano, ao desprezo ou, no extremo, ao extermínio.

Decorre deste foco o fato desta cultura deixar de apropriar-se, espontaneamente, de valores civilizatórios outros, quando não originados na própria fonte, entre os quais a religiosidade que, a princípio, serviu de motor à mencionada expansão, justificando visões que levaram os europeus a considerar-se arautos do divino.

É com esta compreensão que, para os anglicanos, a conquista das Américas significava, segundo aponta Bosi (1992, p. 15), perform the ways of God[1]; para os ibéricos e muitos de seus seguidores, a catequese indígena, assim como a escravização de africanos, supunha, pelo menos segundo os Sermões XIV e XXVII do Pe. Vieira[2], o necessário estágio de purificação, a preparar a Salvação após a morte.

Foi assim pensando que os europeus em seu processo de expansão, quando se depararam com as culturas exógenas, por consequência, nada mais objetivaram que conquistar os povos encontrados pela via da destruição ou desclassificação cultural.

Isto posto, este artigo se coloca, a partir dos valores gerados na matriz africana apresentados na diáspora, no enfrentamento às posturas negativas sobre as negritudes, ainda tão atuantes em nosso mundo social atual.

Origem da cultura africana nas Américas

Não parece possível compreender a cultura de matriz africana transplantada, compulsoriamente e via escravização, para as Américas, exceto se as vistas se voltarem para a religiosidade destes povos, vitimados no processo.

Isto porque tinham eles, na religiosidade, a formatação das sociedades locais; isto, em todos os sentidos: é da religiosidade que se depreendem seus valores civilizatórios[3]; além disto, como escravos e provindos, especialmente, da costa atlântica em direção às Américas, estes africanos somente trouxeram, de si, sua cultura. Cujo assento enraizava-se, apenas, na religiosidade.

Porém esta religião, embora também enquadrada, assim como o catolicismo e segundo Thornton (2004), no modelo “revelação contínua”, era vista, pelos colonizadores, como intolerável adoração ao demônio; portanto, ou era reprimida, ou desprezada; decorre que os fundamentos religiosos trazidos pelos africanos para as Américas, viram-se relegados à consistente desclassificação; isto, quando não temidos e vigorosamente enfrentados pelo Estado, exercitando seu poder de violência legalizada.

Cabe, portanto, desmistificar elementos desta cultura; não com fins catequéticos mas, sim, para expô-los como significantes e estruturantes da socialização de matriz africana, incluindo-se, aí, os efeitos didáticos deste modelo, mesmo sem enfrentar o modelo europeu tradicional.

Ajustes etimológicos

Jean Baptiste Debret
Jean Baptiste Debret

De início, parece necessário ajustar-se alguns termos aplicados, pelo menos no Brasil, a elementos da cultura de matriz africana, especialmente em seu viés religioso.

Isto porque tais termos são utilizados, consistentemente, com intuito pejorativo; isto, sem que quem os utiliza sequer se preocupe em conhecer a etimologia dos mesmos que, por via da cultura disseminada, consolidou-se distorcida, com o que perpetuou, consistentemente, a conotação de inferioridade que a constância de tal uso cimentou.

Assim, por exemplo, com o termo candomblé: embora o sentido cultural e pejorativo com que o termo é utilizado pelo vulgo, a palavra, em si, sequer tem sentido religioso! Quanto mais, o significado de feitiçaria, de adoração ao demônio, conforme é comumente tratado.

Na verdade, candomblé parece fruto, especialmente, dos processos de resistência cultural a que os africanos se viram obrigados, diante do escravismo institucional e estruturante da sociedade de então.

O dicionarista Lopes (1995) assim descreve o termo:

(1) Tradição religiosa de culto aos orixás jêje-nagôs. (2) Celebração, festa dessa tradição; xirê, (3) De origem banto mas de étimo controverso. Para A.G.Cunha é híbrido de candombe mais o iorubá ilê, casa. (negritos nossos)

Portanto e se, de fato, candomblé deriva da junção dos termos bantu candombe, festas, e do iorubá ilê, casa, o mesmo nada mais significa que folguedo em casa, festa no local de moradia; no caso, na senzala, por exemplo.

No entanto, há que se notar que este termo, provavelmente, resulta, conforme já abordado, de estratégias de resistência cultural do africano escravizado.

Isto é: diante de possíveis similaridades entre as comemorações de santos católicos com os deuses africanos, estes fiéis escravizados, muito provavelmente, tenham solicitado, àqueles colonizadores, o direito de também comemorar tais santos católicos. Mas, exteriormente, apenas!

Como exemplo: os escravizados podem ter pedido para festejar Iansã junto à festa católica dedicada a Santa Bárbara, já que ambas as divindades, tanto a católica quanto a africana, são relacionadas aos raios e tempestades[4].

Outro termo que, em português, carrega conotação negativa, é macumba. Isto, apenas porque quem assim pensa, sequer desconfia que macumba é, simplesmente, o plural de cumba, já que, em idiomas da família bantu, as flexões ocorrem por prefixação, não por sufixação, como nos idiomas de origem latina.

No caso em tela, cumba é um instrumento, similar ao reco-reco e produzido a partir da árvore que lhe dá nome, na África Central; como é utilizado nos rituais sagrados, macumba nada mais significa que reco-recos rituais, sendo, macumbeiro, aquele que o toca. Apenas isto.

No mesmo andar o termo feitiço que, incorporado ao português pelo francês fetiche, remete a objeto fictício, ficto – do latim fictus – que simboliza o alvo que se quer atingir.

Poder-se-ia prosseguir pela análise de outros termos, tais como a diferença entre babalaô e babalorixá, pai-de-santo e filho-de-santo, por exemplo; mas, o que acima vai, para demonstrar o que aqui se propõe, deve bastar.

Bases filosóficas africanas

Na reprodução: uma sessão de palmatória em escravos retratada por Debret.
Na reprodução: uma sessão de palmatória em escravos retratada por Debret.

Como preâmbulo a este tópico, é preciso repisar que o africano, por escravizado, só pode transportar de si, na viagem transatlântica, sua filosofia que, em sua terra, tinha fundamento altamente religioso.

Partindo deste ponto de vista, torna-se necessário esclarecer como a religião desta matriz se apresenta a seu fiel, o que pode ser representado por uma pirâmide, subdividida em quatro corpos.

Tendo em vista esta figura, o africano enxerga, no topo desta pirâmide, o Criador, ao qual o iorubá denomina Olodumaré e/ou Olorum[5]: é deste Ser que emana toda a força vital, ou energia criadora, que o africano denomina asè.

Em nível imediatamente abaixo, estão os orixá e as iabá[6], gerentes da distribuição desta energia para o mundo material; desta forma, a cada orixá ou iabá, cabe a “gerência” de uma parcela deste asè, assim como, por exemplo, o é a dissociação da luz no arco-íris.

Esta distribuição abrange toda a natureza; para os seres humanos, no entanto, ela é, ainda, concentrada, filtrada e distribuída pelo nível logo abaixo, que é o da linhagem ancestral[7].

Quanto ao fluxo do poder vital, circula, em princípio, em sentido divino-profano, ou seja: Olorum-natureza; porém o ser humano, que é responsável pela manutenção desta, com quem partilha o asè, deve fazê-lo retornar, em parte, para o divino, via das oferendas que, na verdade, nada mais são que a demonstração de agradecimento pelo que a energia vital lhe permite obter, propiciando a sobrevivência harmônica do grupo.

Para melhor compreensão eis, abaixo e esquematicamente, o que acima vai exposto; note-se que a função do sacerdote não é a de conduzir seus fiéis ao encontro da divindade mas, sim, aproximar, harmonizando, o orum e o ayê, com o que a circulação do asè se completa.

Ressalte-se que, neste esquema, o ser humano e a natureza estão no mesmo nível, qual seja: o do mundo material. Portanto, para o africano que, compulsoriamente, trouxe sua visão de mundo para este lado do Atlântico embutida em sua religiosidade, o ser humano não é superior à natureza que o sustenta, mas, sim, responsável pela manutenção desta.

Em outras palavras: para este africano e sua descendência cultural, a ecologia não é opção – é profissão de fé.

Talvez caiba, agora, repisar, por necessário, o que significa asè para os fiéis deste culto: asè é a força vital que, emanada pelo Ser Criador, permeia e mantém toda a existência, material e imaterial, no orum e no ayê.

Assim sendo, após gerada pelo Criador, filtrada e direcionada pelos orixá/iabá e os ancestrais, o asè, na natureza, dissemina-se pelos membros do grupo, fortalecendo-se pela ação coletiva e possibilitando o realizar, no sentido material.

Porém, esta força não é estática: está em constante movimento, fazendo a ligação entre os mundos material e imaterial, e sendo distribuída por toda a natureza, que deve ser cuidada e mantida pela humanidade.

Debret - Negra Tatuada Vendendo Cajus - 1827
Debret – Negra Tatuada Vendendo Cajus – 1827

Portanto, sendo força que emana do Divino para a natureza, flui em sentido vertical; mas, entre os humanos, faz a ligação entre eles, ou seja: produz a horizontalidade, ao unir, indistintamente, todos os membros do grupo; daí a filosofia ubuntu[8], esta palavra, mágica, que possibilita compreender porque, entre africanos, bem como entre os adeptos da religiosidade dali advinda, forma-se o sentimento de pertença, onde a individualidade vale bem menos que o grupo.

Para melhor compreensão, pode-se dissecar ubuntu em quatro partes:

Parte Tradução Característica
Muntu Mu = o ser humano, consciente O ser humano, topo e responsável pela natureza, capaz de manipular o asè.
Kintu Ki = outros seres, não conscientes A natureza a ser cuidada pelo ser humano que, dele, depende.
Huntu Hu = lugar e tempo A força, constantemente alterada, localizada na junção do espaço com o tempo.
Kuntu Ku = qualidades sociais e naturais As qualidades da sociedade e da natureza: bonito, bom, verdade, mentira, etc.

 

Assim sendo e segundo ensina Silva (2009), ubuntu é a filosofia que se refere à humanidade com os outros, porque assentada na capacidade humana de compreender, aceitar e tratar bem ao outro, de onde deriva a generosidade, a colaboração, o sincero desejo de harmonia entre os seres humanos.

No entanto, embora tal filosofia se assemelhe à utópica universalidade pregada por diversas outras religiões, na africanidade, por assentar-se, de início, entre aos membros de cada grupo, de onde se expande[9], ela, de fato, atua e se materializa; daí decorre o já afirmado conceito de que o grupo é muito mais importante que o indivíduo.

Como decorrência deste entendimento, o indivíduo só o é quando pertence a um grupo, o que o faz existir enquanto humano; portanto, tudo o que é ruim para o indivíduo é ruim para o grupo, de onde decorre a obrigatoriedade, individual, de produzir o melhor possível para o grupo todo, mesmo quando em detrimento da vontade própria.

Sobre o tema, Munanga (1984, p. 70) ensina:

Assim, a filosofia de participação na vida global do mundo, a busca do crescimento da força, a consciência da primazia do coletivo sobre o indivíduo, constituem um outro aspecto da africanidade. Evidentemente, essa visão ontológica é expressa de diversas maneiras, mas a coisa existe em todas as culturas; só a maneira de expressar é diferente.

Por outro lado, há que se compreender que o asè, ao abranger toda a comunidade, porque o faz a partir dos ancestrais[10], formata o grupo estendido e a família estendida, o que compreende não só os vivos mas, também e principalmente, toda a linhagem, que permeia todo o grupo. Sobre o tema, vale a pena recorrer, novamente, a Munanga (1984, p.70):

Isso é um dado fundamental que se encontra em toda a África. A dependência da linhagem, essa união entre vivo e morto, cria uma dependência do indivíduo em relação à linhagem. O cordão umbilical nunca é cortado inteiramente, mesmo quando tiverem a idade madura […]. A solidariedade do parentesco, no caso da morte e da integração dos filhos do morto na linhagem, é muito importante. É dentro do contexto da linhagem que o indivíduo aprende seus papéis dentro da sociedade […].

Ainda ele, mesma página, um tanto mais além:

Cultuando os ancestrais, ao mesmo momento em que ele vive a solidariedade da linhagem, o jovem africano é introduzido aos valores básicos de sua cultura: força, fecundidade, harmonia com a natureza – fundamentos da filosofia africana.

É desta visão que decorrem algumas incontornáveis posturas sociais: o respeito ilimitado aos mais velhos, além do dever, de todos, de cuidar de todos, para que todos cuidem do indivíduo e da natureza.

As bases culturais africanas, materializadas

Como efeito do que acima vai exposto, algumas posturas são produzidas como efeitos sociais efetivamente atuantes, que assim se interligam:

. se o asè deriva do poder divino, pode ser representado como linha descendente dirigida ao indivíduo, ou seja: do orum em direção ao ayê;

. porém, se a filosofia ubuntu o coloca em igualdade a seus pares, o indivíduo, por inserido nesta linha horizontal, está no vértice das duas linhas;

. assim sendo e em função ainda da filosofia ubuntu, o indivíduo, embora obrigado a agir, sempre, em função de todo o grupo, tem sua primeira inserção no subgrupo com a mesma faixa etária[11];

. decorre que, estando todos na mesma faixa etária enquanto grupo, inescapavelmente tornar-se-ão adultos, pais, avós, anciãos, ao mesmo tempo; assim, também a morte, a transformá-los em antepassados, ocorrerá em tempos próximos, persistindo, portanto, a união do grupo, mesmo após o evento final;

. ora, se o asè é permeado pelos ancestrais[12] antes de atingir o grupo dos viventes, aquele que se transforma em ancestral post mortem, necessariamente irá interferir em sua descendência, o que explica, por si só, tanto a circularidade horizontal – ubuntu­ – quanto a vertical – fluxo do asè – e, sobretudo, repise-se, o incontornável respeito aos mais velhos que, a seguir o fluxo da natureza, tornar-se-ão antepassados antes das gerações posteriores!

Eis a lógica da cultura africana, materializada.

Valores culturais e civilizatórios de matriz africana

Isto posto, não parece tarefa de difícil execução deduzir que a cultura de matriz africana se encontra assentada em valores civilizatórios que decorrem da filosofia acima exposta; dentre estes, cabe destacar:

. a ancestralidade que, conforme acima visto, decorre da visão do asè circulando em sentido imaterial/material; mas que, antes de atingir o grupo, é gerenciado pelos antepassados mortos; que, na visão africana, não estão mortos: mesmo que abandonada a matéria, a essência continua ativa, atuante, e permeando os destinos de todo o grupo; que, de todos os ancestrais, descende;

. a comunidade, cuja coesão deriva da visão ubuntu: sem a totalidade dos membros do grupo, o asè que por ali circula nunca estará completo e, portanto, a felicidade individual também fica defectiva;

. a complementariedade, valor que decorre, necessariamente, do que acima vai descrito; mas, não só: para o africano e para quem se vincula à sua filosofia transatlântica, as diferenças passam a ser não só desejáveis como, mais profundamente ainda, imprescindíveis; isto porque somente a diferença permite a complementariedade: se todos os membros do grupo dispusessem, apenas, das mesmas habilidades, personalidades, tendências, disposição, ninguém acrescentaria nada ao grupo que, ao se tornar homogêneo, não teria qualquer possibilidade de plasticidade, movimento, inovação. Decorre que, na diáspora e, especialmente, no candomblé que se pratica no Brasil, não é cabível qualquer tipo de discriminação, quer por raça, orientação sexual, gênero, deficiência, ou qualquer outra diferença: o não igual é, sempre, complementar; portanto, necessário à funcionalidade do grupo.

Isto posto, há que se destacar, ainda, os procedimentos sociais que daí decorrem:

. a ludicidade, por exemplo, pode ser vista como decorrência direta da complementariedade: não é admissível entender que qualquer grupo possa conviver sem que o lúdico o una;

. a corporeidade: além disto, sendo o asè a força que permeia e penetra todo o universo, logicamente percorre e penetra todo o corpo material, não somente o exterior do mesmo; portanto, o africano e sua descendência cultural celebram o sagrado no dia-a-dia, o tempo todo[13] e, durante seus rituais, as danças, os cantos[14], as roupas e os gestuais, mesmo quando sagrados, devem dar prazer, celebrando a ludicidade.

. desta visão decorre a oralidade: não que a civilização africana despreze a palavra escrita; ou, a considere inferior àquela falada; nesta civilização, elas, apenas, são vistas de forma diferente: enquanto a palavra escrita permanece inerte, congelada no meio físico que a suporta, a palavra falada carrega, consigo, o dinamismo e a essência de quem a profere; há que se notar que a palavra é o ar – ou seja, a natureza ampla – que, aspirado, antes de produzir o som, percorreu todo o corpo de quem fala; daí que a voz, que resulta do ar gerando a palavra em si, ao retornar à natureza, carrega a individualidade, o ethos, a essência de quem a profere, como um DNA natural individualizado; tanto assim que a voz é tão particularizada que pode ser reconhecida já no bebê, e assim permanece mesmo após as inevitáveis alterações que a longevidade traz; além disto, a oralidade carrega, consigo, o poder do dinamismo que, na África e em sua descendência cultural, é balizada pelo respeito à comunidade, a cercear a mentira; talvez por isto Munanga (1984), ele mesmo africano do Congo, embora radicado há muitas décadas no Brasil, informe (p.70): “a palavra, na África, mata”.

Valores africanos e educação

Isto posto, parece possível sugerir que os valores civilizatórios e culturais africanos cabem nos ambientes escolares, mesmo quando formais, com o que o processo de transmissão de saberes, talvez, possa tornar-se passível de melhor absorção.

Até porque sobre o tema já se debruçaram, no Brasil e entre outros, Santos e Luz (2007), apresentando sua experiência assentada na teatralização dos mitos religiosos de matriz africana.

Por outro enfoque vem Caputo (2012) que, em vinte anos de pesquisa ininterrupta em terreiros, apresenta não só interessantíssimas possibilidades de ensino com base na matriz cultural aqui abordada mas, também e tristemente, o enfrentamento que adeptos de religiões desta matriz suportam no ambiente escolar oficializado.

Ainda no viés da pesquisa, recentes estudos vêm sendo desenvolvidos em ambientes de pós-graduação, entre outros, na Universidade Federal de São Carlos, especialmente em seu campus Sorocaba.

Dentre estes, a dissertação de mestrado de Silva (2014) que, abordando modelos sugeridos e aplicados em variados ambientes de matriz africana, foca na experiência multicultural do Centro Cultural Quilombinho, em que tais valores servem de base a toda a didática ali aplicada.

Mais profunda e recentemente, Santos (2016) descreve, em seu trabalho de conclusão de curso, a experiência por ela exitosamente desenvolvida em classe de ensino infantil na qual, assentada nos valores civilizatórios acima elencados, buscou criar barreiras ao desenvolvimento do racismo estrutural nas personalidades, ainda em formação, postas a seus cuidados.

Neste ponto, cabe voltar os olhos para Rocha (2009), para quem os valores aqui abordados podem servir como fundo à prática pedagógica assentada nas africanidades. É com este foco que ela opina (p. 51):

Pedagogicamente, penso que a circularidade possa favorecer uma relação de respeito e de aprendizado entre os(as) estudantes e os(as) professores(as); […] enfim, entre todos os sujeitos sociais que atuam nesse contexto. O(A) professor(a), como mediador de conhecimentos e valores, não será a autoridade e o(a) aluno(a), o receptor, mas estará, hierarquicamente, a serviço da ativação e articulação das potencialidades dos(as) estudantes, numa relação ética e respeitosa. (negritos nossos).

Resumindo: com este foco, entre professor e aluno deve permear o respeito, a atenção, a cumplicidade, o reconhecimento de que o aprendizado é mútuo, conforme já ensina Freire (1996, p. 25): “Quem forma, se forma e re-forma ao formar, e quem é formado, forma-se e forma ao ser formado. […]. Quem ensina aprende ao ensinar, e quem aprende, ensina ao aprender”.

Entre outros valores abordados por Rocha (2009, p. 54), a solidariedade e o comunitarismo remetem, certa e diretamente, aos valores comunidade e complementariedade acima já abordados; isto porque, segundo ela (p.54), “o comunitarismo torna equânime todos os participantes do processo educativo sem perder de vista a singularidade de cada um no processo”, o que, necessariamente, implica na colaboração intergrupal, remetendo à solidariedade.

É neste sentido que, segundo a mesma autora (p. 54), “solidariedade e comunitarismo são partilha e socialização do que se possui”.

Prossegue ela à mesma página, opinando que “o comunitarismo, tendo como base a solidariedade, aponta alternativas pedagógicas positivas de construção de conhecimento e trato dos conteúdos escolares”, pois “as propostas de trabalho vivenciadas coletivamente proporcionam aprendizagens interativas, em que valores como fraternidade, partilha e aceitação negociada terão que ser exercitadas”.

Ainda à mesma página, a autora opina: “a circularidade e o comunitarismo aí se completam. O comunitarismo leva em conta a singularidade individual no processo de construção coletiva” (negritos no original), fazendo com que o conhecimento individual circule entre toda a comunidade, o que o torna, por consequência, conhecimento solidarizado.

Assim sendo e por via de consequência, reforça a união do grupo, colocando barreiras aos perniciosos processos excludentes, tais como o preconceito, a discriminação, a rejeição infundada e o racismo.

Quanto à corporeidade, a mesma autora (p. 60) informa que, dentro da cosmovisão africana, o corpo é um universo e uma singularidade; a apoiar esta informação, recorre a Oliveira (2004, p. 11, apud Rocha, p. 60), que opina que o corpo “é a unidade mínima possível para qualquer aprendizagem”, mas “a unidade máxima para qualquer experiência”.

Portanto, segundo ela ensina (p. 60), “na cultura negra, o corpo é fundamental, pois a força está no corpo. Não se concebe o corpo separado do todo. Ele faz parte do ecossistema”. Então, prossegue: “mais que um referente biológico, o corpo é território de cultura. O corpo é o que somos, e o que somos é construção da comunidade a que pertencemos”.

Ora, se assim é, a utilização do corpo como instrumento didático remete, necessariamente, à ludicidade, que pode ser utilizada no sentido “fazer para saber”, ou seja: o ensino a partir da experiência, o que, via de regra, irá provocar a dúvida, permitindo que a resposta não venha, apenas, do professor para o aluno como algo imposto mas, sim, como explicação às questões por este levantadas.

Em outras palavras: é o aluno invertendo a posição tradicional do ensino ocidental, posto que passa de agente passivo, repositório da “educação bancária” tão condenada por Paulo Freire (1987), a agente ativo que, curioso, busca respostas em quem confia: o professor.

Parece evidente que, fluindo o conteúdo neste sentido inverso, o aprendizado carrega chances muito maiores de se tornar efetivo e consolidado.

Evitando alongar-se mais, não há como contornar a importância da ancestralidade a ser utilizada como instrumento didático, quando vista como o irrestrito respeito aos mais velhos, como já acima abordado.

Ressalte-se que não se trata, apenas, do respeito do aluno ao professor, não! Este valor cultural traz, consigo, potencialidades outras em sua aplicação como instrumento didático.

Como exemplo, pode ser utilizado na promoção da coleta de estórias de vida, em que os alunos, buscando levantar a historicidade da própria família, podem trazer, para a escola, elementos culturais não conhecidos e, até mesmo, provocar a teatralização das estórias levantadas. Talvez, até de estórias combinadas, reforçando o sentido da complementariedade comunitária.

Se assim for, o elemento lúdico, a partir da possível adoção e desenvolvimento da música e da dança estará presente, bem como a corporeidade, a aliar-se, possivelmente, à oralidade, à compreensão do comunitarismo e à solidariedade, visto que o teatro, conforme aqui abordado, não pode ser espetáculo individual; até porque parece ter o potencial, de promover a autoestima do alunado.

Alternativamente, pode-se promover o convite a membros da sociedade para a contação das próprias estórias, com o que esta comunidade poderá sentir-se inserida no contexto escolar, alvo tão buscado mas de tão difícil atingimento, ainda nos dias atuais.

Poder-se-ia, talvez, prosseguir por este caminho, abordando possiblidades reais da aplicação dos valores culturais de matriz africana em ambientes escolares tradicionais; porém, não é este o objetivo deste artigo, cujo alvo pouco vai além das provocações aqui apresentadas.

Se algum corpo docente e seus entornos, acaso se dedique à leitura deste artigo e, ao fim, assim entenda, este autor dar-se-á por muito bem pago.

Referências

BÂ, Amadou Hampâté. Amkoullel, o menino fula. São Paulo: Palas Athena: Casa das Áfricas, 2003.

BOSI, Alfredo. Dialética da colonizaçãoSão Paulo: Companhia das Letras, 1992.

CAPUTO, Stela Guedes. Educação nos terreiros: e como a escola se relaciona com crianças de candomblé. Rio de Janeiro: Pallas, 2012.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido, 17ª. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.

LITERATURA BRASILEIRA: Textos literários em meio eletrônico. Sermão XIV (1633), do Padre Antônio Vieira. Edição de referência: Sermões. v. V. Erechim: Edelbra, 1998. Disponível em <http://www.dominiopublico.gov.br/dowload/texto/–fs–000032pdf.pdf>. Acesso em 30 nov.2016.

LOPES, Ney, Dicionário banto do Brasil. Rio de Janeiro: Centro Cultural José Bonifácio, 1995.

MUNANGA, KabengeleO universo cultural africano. In: África-Brasil, Belo Horizonte, Fundação João Pinheiro, v.14, n. 7 a 10, p. 64-74, jul a out.1984.

PRANDI, Reginaldo. Mitologia dos orixás. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

ROCHA, Rosa Margarida de Carvalho. Pedagogia da diferença. Belo Horizonte: Nandyala, 2009.

SANTOS, Ana Paula Silva. A construção de identidade étnico-racial no contexto da educação infantil, 2016, 83 f. Trabalho de Conclusão de Curso (Especialista em educação infantil) – Programa de Especialização em Docência em Educação Infantil, Universidade Federal de São Carlos, Sorocaba, 2016.

SANTOS, M. Deoscóredes; LUZ, Marco Aurélio. O rei nasce aqui: Oba Biyi, a educação pluricultural africano-brasileira. Salvador: Fala Nagô, 2007.

SARAIVA DE SOUSA, J Francisco. Padre António Vieira: os escravos negros e a devoção do Rosário. Disponível em<http://cyberdemocracia.blogspot.com.br/2012/02/padre-antonio-vieira-os-escravos-negros.html>. Acesso em 22 nov.2016.

SILVA, Dilma Melo. Por que riem da África? São Paulo: Terceira Margem, 2009. (coleção Percepções da Diferença. Negros e brancos na escola, 6)

SILVA, Mariana Martha de Cerqueira. Africanidades e educação popular: uma análise de propostas e vivências pedagógicas de movimentos negros em Sorocaba, 2014, 133 f. Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal de São Carlos, Sorocaba, 2014.

THORNTON, John K.. A África e os africanos na formação do mundo atlântico (1400-1800). Rio de Janeiro: Campus / Elsevier, 2004.

* Mestrando em Educação pela Universidade Federal de São Carlos – campus Sorocaba. Coordenador da Câmara de Preservação Cultural do Núcleo de Cultura Afro-Brasileira – Nucab –da Universidade de Sorocaba – Uniso.

[1] Em tradução livre: percorrer os caminhos do Senhor; alternativamente, seguir os comandos de Deus.

[2] Sobre o tema, ver Saraiva de Sousa, J Francisco. Padre António Vieira: os escravos negros e a devoção do Rosário. Disponível em<http://cyberdemocracia.blogspot.com.br/2012/02/padre-antonio-vieira-os-escravos-negros.html>. Acesso em 22 nov.2016. Também disponível em <http://www.literaturabrasileira.ufsc.br/_documents/0043-01872.html>. Acesso em 30 nov.2016; além destes, Literatura brasileira: Textos literários em meio eletrônico. Sermão XIV (1633), do Padre Antônio Vieira. Edição de referência: Sermões. v. V Erechim: Edelbra, 1998. Disponível em <http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/fs000032pdf.pdf>. Acesso em 30 nov.2016.

[3] Conforme Munanga (1984, p. 70): “um conjunto de traços culturais comuns a centenas de sociedades da África subsaariana.”

[4] Virgem nascida na Nicomédia, atual Turquia, a santa católica é considerada protetora contra raios e tempestades; isto porque quando de sua morte por degolação, por haver-se recusado a renegar a fé cristã, um trovão soou com grande estrondo e um raio atingiu seu carrasco, que era seu próprio pai; daí deriva a fé em sua atuação contra os raios e tempestades, visto que este fato foi interpretado, por seus fiéis, como demonstração de revolta divina contra sua martirização. Já Iansã, é a deusa africana dos raios, do fogo e da tempestade; esposa de Xangô, com quem forma o “casal do dendê”; guerreira, o acompanhou, mitologicamente, até a morte, conforme relata Reginaldo Prandi, em Mitologia dos Orixás.

[5] De oló, senhor; odu, caminho do destino; maré, supremo; orum, o mundo místico, imaterial, em oposição ao ayé, o mundo real e material. Portanto, Olodumaré, senhor supremo dos caminhos do destino, e Olorum, senhor do mundo místico.

[6] Orixá é o termo pelo qual são denominadas as entidades místicas que o candomblé acredita gerirem a força, a possibilidade e a característica da ligação de cada fiel com o sagrado; o termo deriva da junção das palavras ori que, em iorubá, significa cabeça, mais que, no mesmo idioma, pode ser entendida com significado próximo a guardião; portanto, orixá é o ser divino que atua como guardião da cabeça de cada um, intermediando, portanto, a ligação entre os humanos e o poder divinizado que rege toda a natureza. Iabá, de ia = mãe, mulher, designa as “orixá” femininas. Obs: orixá, não orixás; iabá, não iabás; o plural africano, conforme já abordado, não se forma por prefixação.

[7] Ancestral, aqui, no sentido amplo, ou seja: inclui os antepassados mais os mais velhos da mesma linhagem.

[8] Filosofia africana que deriva da máxima zulu umuntu ngumuntu ngabantu (uma pessoa é uma pessoa através de outras pessoas). Note-se que, segundo ensina Munanga, ntu significa pessoa e bantu, plural de pessoa, todo grupamento cultural que utiliza este termo com esta significação.

[9] Foi com isto em mente que o bispo Desmond Tutu, sob o governo Mandela, promoveu a reconciliação entre brancos e negros, na África do Sul pós-apartheid.

[10] Compreendidos como o conjunto dos antepassados e os mais velhos.

[11] Sobre o tema, ver o interessante relato de Amadou Hampâté Bâ em sua autobiografia Amkoullel, o menino fula, p. 182-186.

[12] Recordando: o termo ancestral, aqui, abrange o conjunto formado pelos antepassados e os mais velhos.

[13] Sobre o tema, ver Caputo (2012, p. 138).

[14] Que, na verdade, são rezas, saudações, orações.