Uma análise de ‘Afrotopia’, de Felwine Saar

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Capa do livro Afrotopia

Nayara Homem, Por dentro da África

O presente trabalho apresenta um relatório crítico do livro “Afrotopia”, com edição
lançada em 2019 pela N-1 Edições e tradução de Sebastião Nascimento, com 160
páginas, em que traz relevante abordagem acerca dos desafios que o presente e o futuro
africanos delineiam.

Felwine Saar, autor senegalês, economista de formação que, com Achille Mbembe*,
organizou a primeira edição dos “Ateliês do Pensamento” *, com objetivo de estimular
uma corrente investigativa capaz de elaborar África em propostas, ultrapassando a mera
crítica ao período colonial, nos traz texto com primoroso estilo que entremeia dados
colhidos de vasta pesquisa com pensamentos filosóficos, metáforas e figuras de
linguagem, por vezes poéticas, que conduzem o(a) leitor(a) por um caminho instigante,
entrando pelo continente africano, hora desbravando-o em especificidades de cada país
que o compõe, hora vislumbrando um panorama amplo do continente e suas relações
com outras partes do mundo.

No capítulo inicial ”PENSAR A ÁFRICA”, o autor faz uma breve explanação do
desafio contemporâneo da ação título do texto, servindo como bela introdução ao que
virá a seguir no livro. São abordadas questões como o abismo entre o que se deseja de
África como polo criador de saídas e soluções, bem como fonte de recursos para o
mundo em vários aspectos, em contraste com o panorama atual do continente.
Saar vem ainda questionar certos padrões dominantes importados que buscam balizar
a qualidade da vida humana e julgar tantas formas de viver como inadequadas. O autor
encerra o capítulo sem dar uma fórmula precisa acerca do caminho a ser trilhado, porém
expressa a vontade de que os pensadores, principalmente africanos, abracem o desafio
de buscar parâmetros que reflitam os anseios do continente.

Após o primeiro capítulo se seguirá uma análise crítica da trajetória do continente.
Dentro de todo este movimento percebe-se que o autor não assume uma apreciação
acomodada dos acontecimentos, mas se coloca de forma propositiva em relação a
possíveis tomadas de decisão dos trajetos a percorrer. Destacam-se algumas
problematizações no tocante a como a África tem elegido o seu curso até aqui, e em
vários capítulos estas questões retornam ao centro da discussão. Neste caminho de
baobás, mashambas*, e arranha-céus, mas sobretudo de pessoas, tratemos da análise do caminhar, correr e saltar.

CAMINHAR
Para entender o caminhar de uma nação, é preciso que se faça uma leitura profunda e
plural. Neste sentido Felwine Saar nos brinda com o quarto capítulo “A QUESTÃO DA
ECONOMIA”. Muito se engana quem imagina que irá se deparar apenas com um
apanhado de números frios de uma análise quantofrênica. A questão econômica é
tratada de acordo com entendimento do autor, ou seja, trazendo a interseção entre
história, geografia, cultura contemporânea, fundamentos da cultura tradicional,
psicologia etc.

Após breve apanhado histórico e geográfico com abordagem sobre a
tradição agrícola do continente, Saar irá debruçar-se sobre o prejuízo trazido pelo tráfico
transatlântico e seus impactos na densidade demográfica dos países africanos.
Pode-se observar que o autor propõe uma ponte entre o número de indivíduos e a
potência de uma nação, tanto no que diz respeito a este período histórico passado, como,
mais atualmente, com as previsões populacionais dos países africanos em três décadas.
Mas todo este potencial demográfico pode se reverter num grupo confuso de pessoas
que desconhecem seu caminho, caso não venham a definir com precisão aonde ir e
como se orientar. Que tipo de progresso buscar?

Um dos questionamentos mais interessantes do capítulo, quiçá do livro, que toca não
apenas nos africanos, mas em todos os cidadãos contemporâneos, é sobre que tipo de
progresso buscar: que noção de bem-estar guia a estruturação da economia de sua
nação?

Há a possibilidade de viver e escolher? Bem viver de acordo com os próprios critérios
de avaliação? Há como rever os próprios passos e tomar outros caminhos?
O autor evidencia a atual economia material, que vem paulatinamente se sobrepondo à
economia relacional. É possível com esta leitura fazer surgir alguns questionamentos
chave: estes critérios têm algo de genuíno, ou vêm sendo imputados por um sistema
econômico invertido que passou a ver o dinheiro como objetivo e não mais como
consequência?

Vale frisar que em nenhum momento se questiona a necessidade de conforto, a
importância de acesso a bens comuns (que deveriam ser comuns) como saneamento,
saúde, educação, cultura, segurança etc. Mas sim as bases sobre as quais se ergue uma
estratégia econômica para a obtenção de certos resultados e quais concessões ficam em
jogo em meio às ofertas internacionais que, por vezes, passam por cima das lógicas e
fundamentos culturais africanos. Esta reflexão nos leva diretamente à segunda parte do
presente relatório, que fala sobre a obrigação de correr.

CORRER
São inúmeros os momentos em que se desponta, na escrita de Felwine Saar, a ideia
da necessidade de que o continente africano abandone a corrida com outros países do
globo. De forma veemente o autor expressa o quão nociva é esta corrida injusta para
alcançar alguns objetivos que talvez não façam real sentido ao povo africano em sua
trajetória.

No segundo capítulo “CONTRA A MARÉ” o autor confronta os conceitos de
envolvimento e desenvolvimento analisando etimologicamente as palavras e apontando
o perigo de como o conceito de desenvolvimento pode ser usado como pretexto para a
diminuição da autoestima das nações africanas enquanto potências, bem como para uma
espécie de passe para a interferência internacional nos planos e agendas do continente.
Fica expresso que certas comparações com países ditos desenvolvidos, que trilharam
outra história e têm objetivos pautados nas próprias necessidades, só pode gerar uma espécie de cópia mal feita e a sensação de estar sempre na retaguarda desta corrida internacional ao almejar alcançar prioridades importadas.

Este tema virá a se desdobrar no terceiro capítulo “A PROPOSTA DA
MODERNIDADE” onde num movimento de dissecar mais alguns importantes pontos
históricos da construção africana e mundial e ao mesmo tempo trazer um olhar sobre a
afrocontemporaneidade, faz perceber a necessidade de estabelecer alguma harmonia
entre tradição e modernidade, porém o desafio se torna ainda maior quando o autor
conclui que a modernidade africana ainda está por ser inventada.

Felwine Sarr – Divulgação Culturgest

SALTAR
Um dia fomos impelidos a correr para não de sermos devorados, mas talvez o leão
feroz não mais esteja no nosso calcanhar e mesmo assim continuamos a correr pelo
reflexo do que um dia foi a condição vital para nossa existência. A partir do capítulo
quinto “CURAR-SE, NOMEAR-SE” Felwine Saar conclama o povo africano a
abandonar a histerese, parar e olhar para si, rever-se, entender-se e reintegrar-se, para
então dar o salto quântico, seguro de si, em direção ao próprio destino.

Alguns pontos são frisados ao longo dos próximos sete capítulos como condições
sine qua non para alcançar este salto com destaque para: o entendimento da própria
história e apropriação dos saberes para a dignidade; educação e formação do capital
humano; necessidade de revisão da academia africana, não adaptando a academia
colonial mas fundando novos moldes metodológicos, filosóficos e epistemológicos,
abraçando inclusive a linguagem oral e a não dita; integração de seus próprios universos
de referência cultural; a saída do lugar de subalternidade; integração com equilíbrio
entre as esferas do econômico, político, cultural e psicológico.

No capítulo “LANÇAR-SE AO MAR ABERTO” surgem críticas que podem ser
sentidas como duras, pelo pensamento assistencialista ocidentalizado em relação à
África, como por exemplo o questionamento do sentido de “emergência”, que pressupõe
o estado de imersão: um continente afundado ou afogado; da apropriação do futuro de diversas nações por intermédio do estabelecimento de agendas de certo modo impositivas; a necessidade de inserção em um panorama globalizado que pode ser tóxico; e a sedução das formas acabadas como resposta pronta a muitas questões, o que demostra, porém, a
ineficiência no encaixe em contextos diversos ao originário.

O capítulo “AFROTOPOS” começa com um belo apanhado de uma produção
artística africana contemporânea, tão múltipla em estilos e linguagens quanto as cidades,
descritas no mesmo capítulo, expressão e reflexo da diversidade dos estilos de vida
encontrados no continente. O destaque do presente capítulo, no entanto, vai para o
momento em que se analisa o “AFROTOPOS” e dá-se a perceber para o leitor que o que
se apresenta não é uma utopia africana, mas sim a atopia, conceito de “não lugar”
trazido aqui em um sentido de potência máxima. Este lugar que ainda está por
descobrir-se pleno de possibilidades, que é, nomeadamente, o espaço do possível, é a
África, é “Afrotopos”, esta é a “Afrotopia” que grita, fala, canta, ensina, se cala e
declama poemas em busca de ouvir de si a sua voz genuína.

Após em todo texto discorrer numa abordagem quase que completa e de maneira
profunda, o livro encerra-se então com as “LIÇÕES DA ALVORADA” e longe de
subestimar a complexidade de um continente com um povo tão antigo, longe de
desconsiderar a diversidade cultural deste território mãe e os desafios que ele encerra,
muito longe de deixar-se seduzir pelas formas acabadas e pela proposição de soluções
superficiais, Felwine Saar aponta caminhos bem delineados a serem trilhados,
abraçando a fluidez da própria cultura, com a consciência ambiental que cabe a todos no
momento presente e faz com que o(a) leitor(a) abrace a esperança e o desafio
“Afrotopia” a partir da ideia de que é importante separar do impossível o extraordinário.

* 1 Achille Mbembe é camaronês. Um dos pensadores contemporâneos mais prolíficos e ativos, tem uma extensa obra publicada sobre história e política africanas, na qual explora temas como o poder e a violência. (fonte: www.portaldaliteratura.org)
* 2 Ateliês do Pensamento foram organizados de forma anual a partir de 2016 com o objetivo de fazer um balanço sobre o estado da reflexão da África francófona e impulsionar o pensamento decolonial. Para mais informações consultar: ww.lesateliersdelapensee.com
* 3 Mashambas da língua suaíli (Moçambique) plural de shamba, significa plantação, terreno cultivado.

Nayara Homem é comunicadora, multiartista e doutoranda em Estudos Africanos pelo ISCTE-IUL. Em sua trajetória, a artista trabalha com temas ligados à cultura africana e afro-brasileira, principalmente em Salvador, na Bahia.