“A luta é pela paz, liberdade e democracia na República Democrática do Congo”, diz ativista

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Caminhada em Copacabana - Foto - Natalia da Luz
Caminhada em Copacabana – Foto – Natalia da Luz

Natalia da Luz, Por dentro da África

Rio de Janeiro – Em uma terra rica em recursos minerais, a liberdade parece ser uma perspectiva que precisa ser nutrida. Segundo maior país da África, com cerca de 80 milhões habitantes, a República Democrática do Congo convive há duas décadas com uma violência que já deixou mais de seis milhões de mortos. Para se proteger de uma realidade de tantos dramas, congoleses deixam o país e, em todo o mundo, fortalecem o coro de liberdade, paz e democracia. No Rio de Janeiro, um ato realizado no último dia 20 reuniu congoleses com o propósito de chamar a atenção para as violações de direitos humanos no país africano.

– O objetivo da caminhada em Copacabana foi sensibilizar a opinião pública brasileira e o governo sobre a situação em nosso país. O cenário está piorando porque o último mandato do presidente Joseph Kabila acaba em dezembro, mas sabemos que ele não quer deixar o poder. Essa instabilidade política está estimulando novos confrontos – disse o congolês Charly Kongo, em entrevista ao Por dentro da África.

Caminhada em Copacabana - Foto - Natalia da Luz
Caminhada em Copacabana – Foto – Natalia da Luz

O país foi palco da primeira Guerra do Congo (entre 1996-1997) e da Segunda Guerra do Congo (entre 1998-2002), mas em Kivu, região leste do país, o conflito entre milícias e governo permanece. Para fugir da violência, muitos buscam refúgio no Brasil.

Segundo a Agência da ONU para Refugiados, os congoleses representam, atualmente, o maior grupo de refugiados no estado do Rio de Janeiro, com 116 chegadas registradas no primeiro trimestre de 2016, o que representa 55% do total. No primeiro trimestre de 2016, mais da metade das novas chegadas (55%) foram de nacionais da RDC. Atualmente, segundo a Cáritas, há 868 refugiados e 600 solicitantes vivendo no estado.

– Em nosso país, por causa da guerra, milhões de pessoas já morreram, mas poucas pessoas sabem disso em todo o mundo. Esse conflito faz com que muitos congoleses deixem o país e peçam refúgio – disse o estudante da UFRJ Placide Baundjaikuba, completando que o maior motivador dos confrontos é a busca por recursos minerais.

Exploração de minérios – Foto – Banco Mundial / ONU

Nas fronteiras do país, milícias, rebeldes, empresas de exploração de minérios e governos participam de uma guerra que fere a dignidade dos congoleses e seus vizinhos. A República Democrática do Congo possui, pelo menos, 64% das reservas mundiais de coltan. Mistura dos minerais columbite e tantalite, o coltan é imprescindível para a fabricação de eletrônicos portáteis (como celulares, notebooks, computadores automotivos de bordo).

Saiba mais: Recursos minerais nos Grandes Lagos: a relação entre Angola e República Democrática do Congo

Durante a nossa conversa, Charly comentou que a população de seu país é obrigada a viver em uma guerra que não é dela, em uma guerra estimulada por empresas, governos e milícias. Quem levanta a voz contra o governo ou a atuação das milícias é perseguido. Foi esse cerco à liberdade que trouxe Charly para o Rio de Janeiro.

Caminhada em Copacabana - Foto - Natalia da Luz
Caminhada em Copacabana – Foto – Natalia da Luz

-A situação do Kivu Norte não é o único problema grave no país. Poucos sabem sobre a violência que se espalhou sobre o território, que se infiltrou no cotidiano das pessoas, que já faz parte do dia a dia.

Veja mais: “Diáspora congolesa e o apelo aos nossos irmãos”, por Charly Kongo  

Os conflitos no país demandam a maior missão de paz das Nações Unidas, a MONUSCO, que existe desde 2010. O Conselho de Segurança estendeu o mandato da missão até 2017, alertando que a situação humanitária é uma grave preocupação. A tropa autorizada é de cerca de 20 mil militares, 760 observadores militares e funcionários, 391 policiais e 1.050 funcionários de unidades policiais.

-A maioria do povo não conhece sobre a história do nosso país. Hoje, quando um sírio chega aqui, todo brasileiro já conhece a situação porque é uma guerra que aparece muito na mídia, diferentemente do que acontece na República Democrática do Congo – comparou Charly.

Caminhada em Copacabana - Foto - Natalia da Luz
Caminhada em Copacabana – Foto – Natalia da Luz

Milícias

O embate pelo controle de exploração de minérios alimenta uma série de milícias que reúnem milhares de soldados, muitos ainda crianças. Por dentro da África vai listar algumas delas com informações do IRIN.

Um dos grupos mais ativos, o M23, por exemplo, surgiu em 2012, quando centenas de soldados se revoltaram contra condições de vida precárias. Os combates entre o M23 e as FARDC (Forças Armadas da República Democrática do Congo) deslocaram centenas de milhares em Kivu do Norte e forçaram dezenas de milhares a fugirem para Ruanda e Uganda.

Crianças-soldado na República Democrática do Congo – ONU

As FDLR (Forças Armadas pela Libertação de Ruanda) foram fundadas por alguns dos principais autores do genocídio de 1994 em Ruanda, que fugiram para o leste da República Democrática do Congo. A Maï Maï Hilaire (União para a Reabilitação da Democracia do Congo – URDC) é um grupo aliado do M23 e representa políticos e empresários que se opõem ao governo central.

Outro colaborador do M23, Raia Mutomboki, é o maior corpo armado no sul do Kivu. Foi fundado em 2005 pelo desertor do exército congolês Jean Musumbu em resposta a massacres de FDLR.

Força de defesa local contra as FDLR e as FARDC, a FDC (Frente de Defesa do Congo) foi criada em 2012 sob o comando geral do “General” Butu Luanda, ex-oficial do CNDP. A União dos Patriotas Congoleses para a Paz (UPCP / FPC) é uma coalizão de grupos Maï Maï e desertores das FARDC liderados pelo “General” Kakule Vasaka Sikulikyolo Lafontaine.

-Esses e outros grupos têm responsabilidade pela desestabilização do nosso país. Não podemos esquecer que o próprio exército congolês é acusado de cometer atrocidades contra os civis no leste do país – lembrou Charly.

Maiores vítimas: as mulheres

A República Democrática do Congo é considerada a capital mundial da violência sexual. O estupro em massa praticado por soldados e rebeldes é rotineiro. Nesta crise, as mulheres têm perdido o seu lugar na sociedade, após serem estigmatizadas e rejeitadas. Os estupros, muitas vezes, envolvem facas e objetos perfurantes que atingem não só a vagina, mas comprometem o aparelho urinário.

– Estamos aqui para chamar a atenção das pessoas. Mesmo em segurança, não estamos bem, não estamos felizes. Isso porque temos parentes, amigos e muitas mulheres que estão correndo risco lá. Vemos mulheres de 80 anos, 3 anos de idade sendo estupradas. O número de mulheres saindo de lá vem aumentando. Estamos aqui para pedir paz e forçar a saída do presidente. Não temos medo de esconder a cara, estamos falando para ele ouvir – disse, em entrevista ao Por dentro da África, a estudante congolesa Fanny Dorcas.

Denis Mukwege – Divulgação

De acordo com estudo do American Journal of Public Health, 1,152 mulheres eram estupradas por dia, ou seja, 48 por hora, durante 2006, 2007, anos mais tensos do conflito. Em 2015, o número gira em torno de 40, diariamente, de acordo com organizações locais.

Indicado ao Nobel da Paz diversas vezes nos últimos anos, o médico congolês Denis Mukwenge e sua equipe já operaram mais de 40 mil mulheres em 15 anos. Em zona de guerra, Denis fundou o hospital Panzi para atender mulheres violentadas que tiveram que passar por reconstituição do sistema reprodutor para que pudessem sobreviver.

Saiba mais: Denis Mukwege: documentário conta a história do indicado ao Nobel da Paz que salvou milhares de mulheres

Kabila e seus 15 anos no poder

Presidente Joseph Kabila – ONU

-Na nossa Constituição, está escrito claramente que, para o presidente, dois mandatos bastam, mas Kabila quer um terceiro mandato. É por isso que não queremos mais Kabila no Congo. Há outras pessoas que são muito inteligentes, mais do que Kabila. Nós queremos que outras pessoas substituam Kabila para trabalhar no Congo – disse o ativista Yannick Okito, que vive em São Paulo.

Secretário-geral da comunidade congolesa no Brasil, Georges Edgard Bampale, acredita que o atual presidente quer ficar no poder junto com a família por tempo indeterminado. Somando os 15 anos de Kabila e do seu pai, que assumiu o poder após a queda de Mobutu Sese Seko, em 1997, alcançamos 19 anos de comando. Mobutu, conhecido como “Grande Leopardo” (usava um barrete de pele de leopardo), ficou no poder de 1965 até 1997.

Caminhada em Copacabana – Foto – Natalia da Luz

-A lei 64 da nossa Constituição diz que o presidente tem direito a cinco anos e depois mais cinco. Se ele não quer sair, temos, pelo menos, o direito de protestar contra ele. Estamos aqui para cuidar da nossa vida. A minha história é uma prova do que acontece aos que tentam lutar contra os abusos – disse George Edgard Bampale, que teve que deixar seu país às pressas após virar alvo por seu ativismo político.

Caminhada em Copacabana com Georges Edgard e Yannick Okito - Foto - Natalia da Luz
Caminhada em Copacabana com Georges Edgard e Yannick Okito – Foto – Natalia da Luz

História de riquezas e abusos

Durante a Conferência de Berlim de 1885, que dividiu a África entre as potências europeias, Leopoldo II recebeu o território da República Democrática do Congo como possessão pessoal, chamando-o de Estado “Livre” do Congo. A Conferência teve como objetivo organizar a ocupação da África pelas potências coloniais, resultando em uma divisão que não respeitou a história, nem a cultura da região.

Em 1908, o Estado Livre do Congo deixou de ser propriedade da Coroa, por conta da brutalidade do regime comandado por Leopoldo II ter sido exposta na imprensa ocidental, e tornou-se colônia da Bélgica, chamado Congo Belga. Vale ressaltar que o Estado Independente do Congo não era independente, mas uma propriedade de Leopoldo.

Ilustração do rei Leopoldo

A partir de 1891-92, o Estado começou a colher borracha, usando a mão de obra local. Para obter a quantidade desejada, os agentes belgas utilizavam diferentes ferramentas de repressão. Sequestros, chicotadas, fuzilamento, mutilações e abusos de todos os tipos eram castigos frequentes quando não era alcançada a quantia da colheita determinada. Saiba mais: A independência do país que viveu um dos regimes mais cruéis de colonização

– Passamos por tantos momentos sofridos. Hoje, temos os mesmos desejos, as mesmas perspectivas, o mesmo sentido de liberdade de qualquer pessoa em qualquer lugar do mundo. Queremos paz – completou Charly.

Tradução de entrevista em francês – Pedro Andrade