As histórias de Mbanza-Kôngo: Arqueólogo lança site sobre a capital do antigo Reino do Kongo

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Por Natalia da Luz, Por dentro da África

De Mbanza-Kôngo – Mbanza-Kôngo, no norte de Angola, é uma região de extrema importância para a história da humanidade. Há cinco séculos, milhões de ascendentes de brasileiros, cubanos, estadunidenses partiram daquela região conhecida como a capital do Reino do Kongo (território representado por Angola, República Democrática do Congo, Congo e Gabão). Com o compromisso de pesquisar e compartilhar a história e os símbolos da cidade, o arqueólogo Bruno Pastre Máximo, colaborador do Por dentro da África, lança um site baseado em vasta pesquisa de campo.

Mbanza-Kôngo – Arquivo pessoal

-O site é resultado do interesse em tentar popularizar e divulgar narrativas históricas baseadas na tradição para o grande público, assim como expor como foram interpretadas as histórias dos participantes da pesquisa – disse ao Por dentro da África o brasileiro que contou com a ajuda do produtor local congolês Blaise Matondo.

O começo da ligação do pesquisador com a África ocorreu por meio de uma disciplina do curso de História. Durante as aulas de ‘Guerras no Atlântico Sul’, ele acompanhou textos e discussões sobre a participação do Reino do Kongo no comércio de escravos, as relações entre o reino e os portugueses, a participação ativa no comércio e o fascinante legado para o Brasil.

Mbanza-Kôngo – Arquivo pessoal

– Iniciei um projeto de iniciação científica com o tema ‘relações jurídicas envolvendo os portugueses e africanos’ para entender qual o papel das leis e legislação portuguesa dentro das dinâmicas internas no Reino do Kongo, em seguida, desenvolvi o trabalho de conclusão de curso. O mestrado foi estimulado com o início das pesquisas arqueológicas realizadas pelo Museu Arqueológico de Benguela (Angola) e o processo de tombamento da região como Patrimônio Mundial da UNESCO – detalhou Bruno, que está para concluir o mestrado no Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo.

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Enquanto estudava, Bruno percebia um descompasso entre as interpretações existentes sobre o passado da cidade e o que ele lia nos livros históricos. Nos trabalhos científicos, o tema principal era a relação do Reino do Kongo com o Império Português e a ligação com o tráfico transatlântico. Baseado nessa diferença, ele foi até a cidade de Mbanza-Kôngo tentar registrar as narrativas que existem sobre o passado da cidade, confrontando-os com a narrativa colonial (científica) predominante.

Mbanza-Kôngo – Arquivo pessoal

-Apesar das dificuldades como recursos financeiros e tempo, pude observar como a historiografia é bastante desconexa com o que diversos grupos da cidade valorizam sobre o passado da cidade. Para eles, a presença portuguesa é vista como colonialista e opressora no passado. Na verdade, o passado que eles valorizam é aquele pré-colonial, descrito como lugar de liberdade, autonomia, bem-estar, e principalmente, harmonia com o mundo ancestral – disse o pesquisador, que esteve na cidade em 2013 e pode fazer dezenas de entrevistas.

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Como o trabalho se baseava em arqueologia, ele buscou referências na materialidade da cidade para explorar e entender qual é a paisagem idealizada que os moradores possuem sobre os lugares e o que eles simbolizam na narrativa histórica.

A árvore sagrada – Mbanza-kôngo

-Na cidade, existem 3 “lugares-chaves”: Kulumbimbi, Yala-Nkuwu e Ntotila. O kulumbimbi é descrita pelas autoridades científicas angolanas como o vestígio material da primeira catedral construída na África Subsaariana pelos portugueses. Para diversos grupos locais, no entanto, a ruína não é visto como de origem portuguesa, sendo um legado pré-colonial; ela é um símbolo do passado ancestral e um legado dos ancestrais. A árvore Yala-Nkuwu é uma ligação com a ancestralidade mediada pela lei e ordem. Diante dela, foram feitos muitos julgamentos. O Ntotila é o “monarca” que governa o Reino do Kongo. Somente o Ntotila, aquele que governa desde Mbanza-Kôngo, pode ter este título.

Símbolos 

Para Bruno, com a escola representando a principal fonte de aprendizado da história oficial, o conhecimento tradicional é visto hoje como “cafona, velho, ultrapassado”. Isso é observado diante da grande quantidade de jovens que não falam mais kikongo. Porém, mesmo assim a cidade mantém sua crucial importância para a população, funcionando como guia em sua concepção de vida.

Mbanza-Kôngo – Arquivo pessoal

-O governo angolano também não valoriza o saber tradicional ao fazer intervenções cientificas sem a participação da população, desrespeitando os lugares sagrados. O saber que existe da tradição bakongo é hoje visto como uma ameaça para a hegemonia política do governo angolano, e por isso é marginalizada em detrimento de uma narrativa mais ocidental.

Fontes na literatura e tradição oral

Durante as pesquisas, Bruno descobriu que a grande maioria da informação disponível em bibliografia acadêmica sobre o reino não era pautada na tradição oral. Ela se baseia, principalmente, nos documentos produzidos pelos colonialistas durante mais de 500 anos da sua presença em Angola.

Mbanza-Kôngo – Arquivo pessoal

-Não existe um tipo de conhecimento mais correto que outro. Porém percebo que o conhecimento científico não consegue alcançar, de forma bem-sucedida, as populações locais por conta do analfabetismo, do preço exorbitante dos livros importados, da falta de bibliotecas, da publicação em línguas não faladas pela população. Da mesma forma o conhecimento tradicional não é divulgado ao grande público, e pensamos que isto é devido as dificuldades em se fazer pesquisa de campo na cidade, e do alinhamento político do governo de Angola, que favorece e privilegia as narrativas históricas estrangeiras e científicas, em vez de valorizar a tradição local – afirmou o brasileiro.

Bruno partiu de uma bibliografia fundamental sobre a história do Reino do Kongo em diferentes períodos (John Thornton, Anne Hilton, James Sweet, Antônio Gonçalves, Jelmer Vos, Cecile Frommont, Batsikama) e se aprofundou em publicações como a Monumenta Missionária Africana e arquivos portugueses. O trabalho dele não pretende fazer uma análise da tradição oral, mas ser um ponto de reflexão sobre as múltiplas histórias sobre a cidade de Mbanza-Kôngo.

Mbanza-Kôngo – Arquivo pessoal

Conhecendo a história da capital do Reino do Kongo
O site lançado por Bruno foi pensado como uma ferramenta para conseguir suprir o vazio sobre a história do reino na versão de diferentes grupos tradicionalistas da cidade. Por isso também que esse trabalho se dedicou a apresentar um pouco da tradição oral existente em Mbanza-Kôngo.

-A cidade é, sem dúvida, um dos lugares mais significativos na África Centro-Ocidental. Ela conta a história dos percursos da humanidade para se organizar e tentar construir uma sociedade. Antes do colonialismo, a cidade era um ponto importante de concentração populacional, centro religioso e econômico regional, sendo referência para uma série de povos. A chegada dos colonizadores inseriu a cidade em uma conexão global, com relações econômicas e políticas das mais diferentes naturezas – explicou Bruno.

Mbanza-Kôngo – Arquivo pessoal

A chegada dos colonizadores também iniciou um período que culminou na escravização de milhões de centro-africanos rumo às Américas entre os séculos XVI e XIX, povoando e construindo, junto com os indígenas, toda a estrutura da sociedade colonial americana. No continente africano, a cidade era central nas disputas políticas e religiosas, era o ponto-chave do poder tradicional.

Mbanza-Kôngo – Arquivo pessoal

-Nosso sistema educacional olha para a África para entender o Brasil, o que não é errado, pois sabemos da massiva contribuição africana ao Brasil, porém essa abordagem é limitada. O maior exemplo desta limitação é a conclusão de que, mesmo hoje, em pleno século XXI, a grande maioria dos grupos investigados na cidade não reconhece as ruínas do kulumbimbi como uma igreja católica. Como temos certeza de que a experiência dos africanos junto aos cultos católicos no Brasil colônia era realmente entendida como uma conversão católica ou mesmo uma resistência? Será que esses homens não estavam pensando em coisas completamente diferentes e hoje, por estarmos presos aos documentos coloniais, não conseguimos mais alcançar essas narrativas? – questiona o arqueólogo, que, no final de agosto, participará do Congresso Mundial de Arqueologia, em Quioto, Japão.

Mbanza-Kôngo – Arquivo pessoal

Com mais de 50 entrevistas em campo, essa vasta pesquisa que privilegia e expõe as histórias locais, certamente, vai abrir caminhos para que futuros pesquisadores possam se interessar por uma importantíssima e essencial fonte de estudo sobre o passado do Reino do Kongo.

-Em um futuro ideal, as tradições orais e a história acadêmica deveriam conversar, conviver de forma respeitosa, mútua, e com o mesmo espaço e visibilidade.

Visite http://www.mbanzakongo.com/

Mbanza-Kôngo – Arquivo pessoal

A arqueóloga Marília Calazans acompanhou a pesquisa de Bruno Pastre em campo. Por dentro da África teve o prazer de participar de algumas das gravações desse importante estudo. 

 

6 COMMENTS

  1. Bom trabalho , mais precisamos que o mundo soubem e recunhece a fimilha real do Reino do kongo Familha de Sangue para intronisar um Rei que vai restriture Reino do kongo dia Mpanzu , dia Mpangala e Dia Ntotila eu sei que eles ainda existem, isso que a tarefa que ficou !!!!
    Obrigado !

  2. Simplesmente adorei, muito bom trabalho, Africa particularmente Angola não deixa de me fascinar todos os dias, cada metro quadrado tem a sua história, e como é importantíssimo deixar esse legado.
    Parabens

  3. E de felicitar qualquer pessoa preocupado com investigaçoes de género por aquela parte de grande parte da historia da Africa semi abandonada por questões politica escamoteando e adiando os seus sucessos. Ate hoje quem de direito não da luz verde para que Mbanza Kongo beneficie do estatuto de Património Universal. Desde os anos 80 que se preconizava a transferência da sede do CICIBA para Mbanza, Projeto adiado por quem? Sabe-se