Cineasta e ativista sudanês Hajooj Kuka é preso em Cartum

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hajooj kuka, cineasta e ativista sudanês

Ana Camila Esteves, Por dentro da África

A comunidade internacional do cinema se mobiliza para pedir imediata soltura do cineasta sudanês hajooj kuka* e mais quatro artistas e ativistas presos na noite de ontem (17/09) em Cartum, capital do Sudão.

Os cinco civis foram condenados a dois meses de prisão e mais uma multa de 90 dólares por acusação de “poluição sonora” acontecida durante o ensaio de um espetáculo de teatro no espaço Civic Lab, onde artistas e ativistas costumam se reunir para produzir arte.

hajooj kuka é um premiado realizador, tendo apresentado seus filmes em centenas de festivais no mundo, obras com um olhar sensível e crítico sobre o conflito civil no seu país.

Entenda o contexto:

No dia 20 de agosto de 2020, em Cartum, o grupo de cinco artistas sudaneses formado por Duaa Tarig Mohamed Ahmed, Abdel Rahman Mohamed Hamdan, Ayman Khalaf Allah Mohamed Ahmed, Ahmed Elsadig Ahmed Hammad e Hajooj Mohamed Haj Omar foi levado à delegacia por acusações de perturbar a paz da vizinhança com o som que vinha do ensaio de um espetáculo de teatro. Mesmo após terem baixado o volume da música, a polícia apareceu e o que se seguiu foi não só a detenção dos artistas, mas insultos e agressões físicas contra eles. O julgamento, marcado para o dia 17 de agosto, decidiu pela prisão por dois meses do grupo.

Segundo informações da Strategic Initiative for Women in the Horn of Africa- SIHA Network, o incidente tem claras motivações políticas por se tratar de um grupo de artistas e ativistas conhecidos no país por suas iniciativas críticas e contestadoras. Elas afirmam que a ativista Duaa Tarig Mohamed Ahmed, agredida fisicamente pelos policiais, foi julgada separadamente dos outros quatro homens, e repetidamente impedida de prestar queixas contra o policial que a agrediu.

Ensaio de espetáculo na sede do Civic Lab, em Cartum, capital do Sudão. (Reprodução Facebook)

Toda a comunidade dos cinemas africanos no mundo se mobiliza neste momento para pressionar internacionalmente as embaixadas sudanesas com o objetivo de não só libertar os artistas, mas condenar uma clara prática de perseguição contra jovens ativistas no país. Este caso indica a ausência de um sistema de justiça objetivo e justo, e demonstra que as estruturas legais e instituições do Sudão são projetadas para criminalizar os civis a fim de manter o domínio da ideologia islâmica militante e aqueles que mais se beneficiam dela.

A Rede SIHA listou as principais questões envolvidas neste incidente:
1. O povo sudanês ainda é governado por uma estrutura legal que nega aos cidadãos o acesso à justiça. O quadro legal, os procedimentos legais e os artigos da própria lei são concebidos para criminalizar e processar civis, especialmente mulheres e minorias. Mulheres e ativistas ainda são um alvo ativo da aplicação da lei no Sudão, e a criminalização das mulheres é legalmente permitida.

2. Segundo afirmam os jovens ativistas, as pessoas que instigaram o incidente e o denunciaram à polícia são um grupo de militantes religiosos e fundamentalistas. A área onde o Civic Lab está localizado é conhecida por ser habitada por esses grupos.

3. A lei processual sudanesa está confiando demais nos depoimentos dos policiais como testemunhas neste caso, o que indica uma falha clara na Lei de Procedimento Criminal Sudanês e na Lei de Provas.

4. O sistema judiciário continua a ser fortemente influenciado pela ideologia islâmica militante do ex-regime, que criminalizou a liberdade de associação e artes e minou a existência de mulheres na esfera pública.

Este caso foi tratado em um ambiente tendencioso e politizado, que carecia de justiça e devida diligência. Permitiu que cidadãos com certas ideologias atacassem os artistas e se aliassem com a aplicação da lei para criminalizar os artistas, sem enfrentar a responsabilidade pelos ataques que cometeram. É uma mensagem clara dos grupos islâmicos ao governo civil de que a ideologia islâmica ainda está no controle do judiciário e dos aparatos de aplicação da lei do estado sudanês.

Petição

O grupo de ativistas ao qual hajooj kuka e os outros artistas são vinculados preparou um texto de petição pela soltura dos cinco condenados. O grupo revela que hajooj está sendo agredido fisicamente na cela pelos policiais, e que parte dos seus dreads foram arrancados. O texto da petição pode ser acessado no final desta página com os contatos da Embaixada do Sudão no Brasil, em Brasília, para quem quiser ajudar a pressionar o governo sudanês.

Sobre hajooj kuka

hajooj kuka é uma personalidade bastante admirada no meio dos cinemas africanos, e sua prisão por motivações políticas mobilizou uma comunidade inteira de colegas artistas, produtores e cineastas no mundo inteiro. Seu produtor, o sul-africano Steven Markovitz, um dos maiores produtores de cinema no país, postou em seu perfil no Facebook todos os detalhes dos últimos acontecimentos e pede ajuda para que as embaixadas do Sudão em todo o mundo sejam acionadas para pressionar pela liberdade dos cinco artistas.

Com dois longas-metragens lançados nos últimos anos, hajooj kuka se tornou internacionalmente reconhecido quando lançou Beats of the Antonov, um belíssimo documentário sobre a guerra civil no Sudão contado a partir da relação que as pessoas que vivem na zona de guerra tem com a música. Premiado em diversos festivais, o filme abriu caminho para aKasha, longa de ficção que explora o gênero da comédia para refletir sobre o cotidiano da guerra no Sudão.

Cena do filme “aKasha” (2019), de hajooj kuka

No Brasil, Beats of the Antonov foi exibido em 2018 na Mostra de Cinemas Africanos, e aKasha será exibido no mesmo em seu formato online, entre os dias 24 e 30 de setembro de 2020. O filme virá acompanhado de uma entrevista exclusiva com o diretor, gravada no dia 20 de gosto, quando ele tinha acabado de voltar da delegacia com os seus outros companheiros do Civic Lab.

Recentemente, hajooj se tornou um membro da Academia dos Oscars, na categoria de documentário. Além disso, devido ao seu trabalho nas regiões devastadas pela guerra do Sudão, hajooj foi nomeado um dos principais pensadores globais de 2014 pela Foreign Policy Magazine. Ele treina e trabalha com comunidades afetadas por conflitos com técnicas do Teatro dos Oprimidos e em projetos de cinema.

*hajooj kuka (em letras minúsculas) é como o cineasta sudanês assina. 

***

Texto da petição, que deve ser enviado para os e-mails: sudaninbrasilia@gmail.com, sudaninbrazil@gmail.com.

Prezados,
Estou escrevendo para exigir a libertação dos cinco artistas recentemente detidos e condenados por aborrecimento público no Sudão. Hajooj Mohamed Haj Omar, Duaa Tarig Mohamed Ahmed, Abdel Rahman Mohamed Hamdan, Ayman Khalaf Allah Mohamed Ahmed e Ahmed Elsadig Ahmed Hammad representam o futuro de um Sudão livre e não devem ser perseguidos por serem artistas.
O julgamento dos artistas foi conduzido de maneira tendenciosa e politizada. Embora as acusações estivessem todas relacionadas à alegação de que os artistas estavam cantando nas celas onde estavam detidos, o processo deu plataforma para que cidadãos conservadores difamassem e atacassem os artistas por supostas discricionariedades estranhas ao caso. Foi uma mensagem clara para o atual governo de que o antigo regime islâmico ainda controla o judiciário e os aparatos de aplicação da lei. O retorno aos mecanismos de justiça arbitrários nos quais a estrutura legal é usada para controlar a liberdade de associação e expressão é um lembrete assustador do que está em jogo na transição do Sudão.
Estou preocupada com o bem-estar imediato dos artistas após terem sido condenados a dois meses de prisão, especialmente por Duaa Tarig, que foi anteriormente agredida sob custódia policial e foi discriminada com base em seu gênero.
Esses artistas passaram os últimos dois anos criando arte para apoiar a busca do Sudão por liberdade e democracia. Eles criaram centenas de murais e filmes no serviço público, apoiaram o gabinete do Primeiro Ministro e a Televisão Nacional do Sudão e conduziram centenas de workshops de engajamento cívico em todo o Sudão por meio de seu trabalho na rede do Civic Lab.
Os artistas estão na vanguarda da mudança positiva no Sudão e desempenharam um papel crítico na revolução sudanesa. Quando eles não estão protegidos, ninguém está protegido.
Essas ações de um aparato de segurança corrupto estabelecem uma precedência assustadora que deve ser tratada imediatamente. Além de libertar os cinco artistas e a retirada dos seis artistas que enfrentariam julgamento, apelo ao governo liderado por civis para investigar os juízes e a polícia envolvidos neste caso e reformar as leis da era Bashir que injustamente criminalizam civis.
Também chegou ao meu conhecimento que Hajooj Mohamed Haj Omar está sendo espancado na prisão e que arrancaram parcialmente os seus cabelos. Exijo que isso seja interrompido.
Aguardo um retorno da Embaixada do Sudão no Brasil.