Expedição Benim: festividades, carnaval de rua e os “brasileiros” (agudás) de Porto-Novo

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2014
Festividades em Porto-Novo - Bruno Pastre
Festividades em Porto-Novo – Bruno Pastre

Bruno Pastre Máximo e Bernardo da Silva Heer, Por dentro da África 

Porto-Novo, Benim – Quando um brasileiro ouve falar de uma comunidade brasileira em outro país, provavelmente, deve pensar naqueles conhecidos ou amigos de amigos que saíram do Brasil para tentar a sorte, arranjar um bom trabalho, juntar alguma coisa e se ‘misturar’ à população local para adquirir novas identidades. Mas, praticamente, ninguém sabe da existência da importante comunidade brasileira no Benim, país da África Ocidental que tem o carnaval (‘brasileiro’) como uma de suas festas tradicionais!

Chamados de “agudás”, os integrantes dessa comunidade possuem uma história absolutamente única: a partir do século XVIII e especialmente no final do XIX, muitas pessoas que viviam no Brasil resolveram abandonar a América em direção à África. A maioria dos que optaram pelo retorno era de ex-escravos vindos do Benim e que obtiveram sua liberdade; após juntar dinheiro com seus ofícios, conseguiram comprar uma passagem de volta para a África.

Festividades em Porto-Novo - Bruno Pastre
Festividades em Porto-Novo – Bruno Pastre

Acontece que, durante o tempo em que estavam no Brasil, a sua terra natal havia sofrido transformações absurdas. Em muitos casos, as vilas onde viviam seus parentes ancestrais desapareceram em decorrência da captura de escravos. Ao mesmo tempo, o território do atual Benim sofria invasões de franceses cada vez mais hostis, e o país era cada vez mais remodelado pelo contato com os europeus colonizadores. Desta maneira, um território no qual existiam infindáveis grupos e culturas diferentes passava rapidamente por ataques e modificações. Muitas vezes, populações inteiras acabavam sendo expulsas de suas terras ancestrais.

É neste contexto que uma quantidade enorme de ex-escravos brasileiros, depois de dezenas de anos, retornam ao seu antigo território, mas não encontram mais nada familiar. Suas comunidades, suas raízes não existiam mais, e eles, que tinham passado tanto tempo no Brasil sendo estrangeiros, foram vistos como estrangeiros em suas próprias terras. O que fazer, quando a sua antiga identidade não tem mais sentido em sua própria terra?

A solução que muitos destes “estrangeiros em casa” [dica de leitura de Manuela Carneiro da Cunha, Negros Estrangeiros] encontraram para criar a ideia de pertencimento no novo contexto de seus territórios foi muito curiosa: adotaram a identidade de brasileiros!

Carnaval em Porto-Novo, Benim - Bruno Pastre

O mais impressionante é que eles adotaram uma identidade de um país no qual haviam sido brutalmente escravizados, tratados muitas vezes como seres não-humanos, como lixo mesmo. Mas ao mesmo tempo fora nesse país da escravidão, o Brasil, que eles haviam aprendido uma língua europeia, o português, e que haviam aprendido seus ofícios. Assim, de certa forma, criou-se uma identidade positiva com o Brasil, muitas vezes visto por eles como o lugar no qual se aproximaram com a “civilização europeia”.

Carnaval em Porto-Novo, Benim - Bruno Pastre
Bruno no carnaval de Porto-Novo

Esta aproximação se dá principalmente com a sua vinculação com a identidade de grandes traficantes de escravos, que, por sua posição de intermediários comerciais, obtiveram das elites locais grande poder e tornaram-se “famosos” na região. O caso mais exemplar e já citado na reportagem sobre Ouidah é o caso do Chachá de Ouidah, o Francisco Félix de Souza, que se tornou tão importante no final do século XVIII e começo do XIX, que o antigo rei do Daomé concedeu-lhe o título de vice-rei, título que pertence e existe até hoje nos descendentes dos De Souza.

Veja mais: Ouidah é parada obrigatória para aprender sobre Vodum

Se já soa estranho um ex-escravo se orgulhar de ser brasileiro, é ainda mais intrigante ver uma comunidade de “brasileiros” com sobrenomes portugueses e, algumas vezes, com descendência de traficante de escravos! O fato de “ser brasileiro/brasileira” se tornou tão importante que as gerações seguintes também mantiveram essa ideia e os costumes brasileiros daquela época. E esses bisnetos, tataranetos de escravos ou traficantes que vieram do Brasil continuam se identificando como brasileiros até hoje!!! Esses são os agudás.

Carnaval em Porto-Novo, Benim - Bruno Pastre
Bernardo no carnaval de Porto-Novo

No continente africano, uma coisa que nos chamou a atenção  foi o quanto os africanos são capazes de transmitir a cultura de geração para geração, de forma oral. Com os descendentes de brasileiros não foi diferente! Essas pessoas, apesar de nunca terem visto alguém falar português em suas vidas, sabem cantar cantigas em português. Os mais velhos, muitas vezes, sabem também palavras e expressões em português.

Uma senhora de 70 anos que só fala Nagô, Fon e francês nos contou que falava para seu pai: “bença, papai”. Ela também disse que, às vezes, fala “obrigado”, “por favor”, “ladrão”, “burro”, “boa viagem” e tantas outras expressões em português do Brasil, mesmo sem nunca ter conversado nesta língua com alguém. O cumprimento típico entre os agudás que conhecemos era:

– Bom dia! Como passou?

– Bem, obrigado!

Conhecemos muitas pessoas, inclusive adolescentes e jovens, que sabiam cantigas brasileiras antigas e as cantam até hoje, muitas vezes, sem saber o que significam. Por exemplo:

“Boa tarde, senhor, senhora, senhorita… Até amanhã, senhor, senhorita!”

Carnaval em Porto-Novo, Benim - Bruno Pastre
Carnaval em Porto-Novo, Benim – Bruno Pastre

Contato com os agudás

Nosso contato com os agudás foi o melhor possível: quando a gente contava a eles que éramos brasileiros, que partilhávamos a mesma origem, eles abriam TODAS as portas para nós. Eles permitiam que nós conhecêssemos suas casas e oferendas. Permitiram que víssemos de perto o túmulo do Chachá. Como todas as famílias agudás, a família “de Souza” se diz católica, mas, na prática, mistura inúmeras referências do Vodun com seu catolicismo.

Túmulo do Francisco Félix de Souza Chachá I
Túmulo do Francisco Félix de Souza Chachá I

E o túmulo do Chachá foi talvez a maior prova disso: um túmulo católico, com imagens de Santo Antônio e oferendas de bebidas sobre o túmulo, desde destilados fortes até refrigerantes. “O Chachá gosta de um açúcar!”, explicou um habitante local. O detalhe é que  Chachá morreu há 200 anos, mas continua sendo louvado até hoje.

Além das músicas brasileiras, que são específicas de cada família/clã descendente, existem danças típicas, e a principal dos agudás talvez seja a “burrinha”, um ancestral do bumba-meu-boi. Essas danças podem ser observadas no famoso documentário Atlântico Negro, disponível no youtube.

O carnaval de Porto-Novo

Carnaval em Porto-Novo, Benim - Bruno Pastre
Carnaval em Porto-Novo, Benim – Bruno Pastre

Chegamos em Porto-Novo dois dias antes das cerimônias do Carnaval, e já no escritório de turismo, encontramos uma descendente de brasileiros, a senhora Correia, que prontamente nos informou sobre o costume de todos os agudás vestirem a mesma roupa durante as festividades. Compramos o tecido e já mandamos fazer uma Bombá (roupa tradicional) para nós.

Tirando a comunidade brasileira, esta festa é pouco conhecida na cidade, e para os moradores parece algo bastante estranho…Estranho não, estrangeiro! Apesar de ser chamado de Carnaval, os festejos ocorrem em janeiro, devido às celebrações em louvor a Nosso Senhor do Bonfim. O diferencial de Porto-Novo com relação a outras cidades é que as cerimônias são unificadas, participando muitas famílias sobre a direção da família Amaral, e em espaço público. Em Ouidah, por exemplo, os ritos ocorrem nas casas das famílias e são particulares.

Carnaval em Porto-Novo, Benim - Bruno Pastre
Carnaval em Porto-Novo, Benim – Bruno Pastre

A festa começa no sábado anterior ao domingo do Bonfim, na parte da tarde, na Maison Amaral. A casa está em uma das ruas principais da cidade e pode ser facilmente avistada por conta de uma grande bandeira brasileira na porta. Ao entrarmos, fomos muito bem recebidos e sentamos para assistir às apresentações.

Burrinhas e “marchinhas”

No sábado, a música predominante é a “burrinha”, com letras em português e uma sonoridade muito similar às marchinhas do carnaval de Olinda. Algo bastante único e emocionante. Durante as danças, há pessoas fantasiadas representando políticos, personagens históricos e míticos. Dentro da casa do Amaral, recebemos comida, bebidas e passamos algumas horas por lá.

Em um determinado momento, as pessoas começaram a sair da casa, e a festa tomou as ruas da cidade, em uma passeata pelo centro da cidade com a finalidade de visitar as casas dos “patronos” da comunidade brasileira. No ano em que estivemos presente (janeiro de 2014), o grupo visitou somente duas casas: a dos Silva e dos Patterson, porém, em anos anteriores, a caravana seguiu para outras casas.

Carnaval em Porto-Novo, Benim - Bruno Pastre
Carnaval em Porto-Novo, Benim – Bruno Pastre

O número de pessoas na passeata não foi muito grande. Pelo menos, 50 pessoas seguiram cantando e dançando. A maioria do grupo era de jovens, mas havia, de forma espantosa, algumas senhoras muito idosas, que seguiam cantando e dançando durante o percurso de mais de 2 horas!

A maioria também era composta por brasileiros, mas havia alguns “perdidos” que se juntaram no caminho. Chegamos então ao centro, na casa da família Da Silva (já comentada na matéria sobre Porto-Novo), onde pudemos reencontrar o senhor Urbain Karim da Silva. Dançamos bastante,  e ele por ser anfitrião, ofereceu comida aos visitantes e, antes de ir embora, distribuiu notas de 1000 CFA (cerca de US$12) aos participantes, que ficaram muito felizes!

Seguimos para a casa dos Patterson, onde fomos novamente recebidos com comidas e danças. Encontramos também Arnaldo D’Oliveira, o embaixador brasileiro no Benim. Conversamos, dançamos e pudemos ver uma linda casa afro-brasileira por dentro. Após esta parada, retornamos à casa dos Amaral, onde as cerimônias foram encerradas.

Carnaval em Porto-Novo, Benim - Bruno Pastre
Carnaval em Porto-Novo, Benim – Bruno Pastre

No outro dia, às 10:00, vimos a célebre missa em louvor a Nosso Senhor do Bonfim. A Igreja estava lotada, mas a presença de agudás era pequena, porém todos com a mesma roupa! A missa foi longa e o padre fez um sermão elogiando a presença dos brasileiros no Benim e o seu papel como difusores e propagadores do catolicismo. Porém, em um determinando momento, ele fez uma dura crítica à comunidade brasileira, por não passar as tradições aos mais novos e permitir que grande parte da família se converta ao islamismo.

No fim da missa, a banda brasileira tocou música sacra, em português, enquanto os fiéis faziam oferendas de alimentos ao padre. Após a missa, as famílias retornam às suas casas para almoçar. Antigamente, este almoço era feito coletivamente na praça da cidade e já emendava com as celebrações, mas hoje não é assim.

Às 14 horas, as famílias agudás se juntaram na praça em frente ao Congresso Nacional, onde estava montado um pequeno palco para a banda de burrinha dos Amaral se apresentar. Não tem nada do nosso samba, é burrinha mesmo…

Carnaval em Porto-Novo, Benim - Bruno Pastre
Carnaval em Porto-Novo, Benim – Bruno Pastre

Nesta festividade, as famílias levam suas bebidas e ficam em blocos ao redor do palco, servindo bebidas e comidas para os convidados. Nós sentamos na mesa de Patterson, onde estavam mais três brasileiras e o embaixador do Brasil no Benim. Já embalados com a feijoada e cocada, começamos a dançar e ficamos lá por horas, cantando e imitando as pessoas

Um dos momentos mais incríveis foi a entrada dos personagens da burrinha, como o elefante e o boi, que fizeram a alegria das crianças e a nossa! Esses momentos foram muito emocionantes para nós, inesquecíveis! Com o escurecer, a festa perdeu fôlego, e as pessoas começaram a se retirar, deixando para trás dois brasileiros muito felizes e a consciência de que esta tradição tão bonita permanece viva!

Acompanhe a expedição em Por dentro da África! 

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Bruno Pastre Máximo é historiador e mestrando em arqueologia pela USP. Ao lado do parceiro e Bernardo da Silva Heer, ele viajou por Benin, Togo e Gana durante 60 dias e compartilham suas experiências nesse especial

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