Festival de Vodum: conheça os detalhes desse encontro de cultura e religião no Benim

12
19466
Festival de Vodum - Arquivo Pessoal
Festival de Vodum – Arquivo Pessoal

Bruno Pastre Máximo e Bernardo da Silva Heer , Por dentro da África 

Ouidah, Benim – Alguns dizem que, quando descrevemos outra cultura, estamos sempre descrevendo um pouco de nós mesmos também, pois nunca seremos capazes de descrever tudo, mas somente aquilo que nos chama a atenção e da maneira que conseguimos entender e explicar. Portanto, não tomem esse relato como uma verdade absoluta sobre o festival do Vodum no Benim, mas como uma visão de estudantes universitários brasileiros que têm profunda admiração e respeito pelas culturas do Benim, mas que não entenderam nem metade do que viram por lá. Provavelmente, para se entender completamente o festival do Vodum, seja preciso passar muitos e muitos anos estudando e vivendo no sul do Benim. Ou talvez seja mesmo necessário ser “né dedans du Vodoun” (“nascido dentro” do Vodum)”, como eles gostam de falar.

O Vodum é uma religião extremamente importante no sul do Benim (e também em outros países vizinhos, como na Nigéria). Essa religião é a base para a cultura dos povos da região e influencia completamente seus modos de vida e cotidiano, assim como o cristianismo é a base para diversas culturas da Europa ou mesmo para o Brasil.

Daagbo Hounon - Festival de Vodum - Arquivo Pessoal
Festival de Vodum – Arquivo Pessoal

Uma piada comum no Benim é: “no sul do país, 30% da população é islâmica, 50% é cristã e 100% é Vodum!”. O Vodum não era reconhecido como uma religião pelo Estado do Benim até 1992 e foi só a partir deste reconhecimento que foi criado o Dia Nacional das Religiões Nativas do Benim, um feriado comemorado no dia 10 de janeiro em inúmeras cidades de todo o país.

Esta data busca fortalecer e divulgar as religiões nativas do país, como o Vodum que, por muitos anos, foi “diabolizado” pelos colonizadores. Além disso, o feriado virou uma enorme festa popular, que envolve inúmeras atividades e rituais africanos bastante tradicionais, alguns mais divulgados para os visitantes estrangeiros, outros voltados, especialmente, para os integrantes da religião.

Como exemplo das “diabolizações” da religião, os praticantes lembram que a palavra Vodum (ou Voodoo) foi relacionada por Hollywood com “rituais satânicos” de espetar bonecos para fazer o mal, o que criou um obstáculo para as pessoas compreenderem o que significa esse universo tão profundo e tradicional da cultura africana.

Festival de Vodum - Arquivo Pessoal
Festival de Vodum – Arquivo Pessoal

O Vodum era a religião de muitos dos escravos que foram levados para o Brasil até o século XIX e é um ancestral direto do Candomblé do Brasil, especialmente o chamado Candomblé Jeje, que tem grande referência na cultura Fon. Assim, o Vodum e suas práticas podem ser muito familiares para quem conhece e vive o Candomblé no Brasil, apesar de algumas práticas do Vodum serem muito diferentes do que a maioria dos brasileiros que não conhece religiões de matriz africana está acostumada. Para quem quiser conhecer mais sobre as relações do Vodum do Benim e o Candomblé do Brasil, vale a pena ler os livros de Pierre Verger Notas Sobre o Culto aos Orixás e Voduns, e A formação do Candomblé – história e ritual da nação jeje na Bahia, de Luis Nicolau Parés.

Na cidade de Ouidah, o festival do Vodum vai muito além do 10 de Janeiro. As festividades começam pelo menos dois dias antes e podem chegar a uma semana de celebração! Ele acontece em pontos simultâneos em diversos templos voduns. Como não estávamos familiarizados com o local, e o nosso amigo Tangui pertencia ao templo de Daagbo Hounon, decidimos seguir as suas festividades em detrimento de outros cultos. Narraremos aqui algumas experiências que tivemos:

Daagbo Hounon - Festival de Vodum - Arquivo Pessoal
Daagbo Hounon (de cartola) – Festival de Vodum – Arquivo Pessoal

No dia 9 de manhã, fomos a um templo extremamente importante de Ouidah, a casa do Daagbo Hounon, que eles chamam de “O Pontífice, Papa do Vodum”. Para entrar nesses lugares sagrados, é necessário tirar o sapato como sinal de respeito e as fotos só são permitidas mediante o pagamento de RS200,00 para os organizadores. Se você não pagar, não tire fotos, especialmente nos lugares sagrados, pois isso é considerado extremamente ofensivo. Mesmo quem paga precisa ter muito cuidado para não ficar “invadindo o espaço” sagrado deles, e se enfiando no meio de rituais com câmeras enormes, como faziam alguns turistas “sem noção”.

Para entrar nesse lugar não foi necessário pagar nada, mas só nos sentimos tranquilos porque estávamos na companhia do Sr Tangui, um chefe Vodum local que conhecemos na rua e que decidiu nos guiar por todo o festival sem cobrar nada por isso.

 

Festival de Vodum no Benin
Festival de Vodum – Arquivo Pessoal

Uma vez dentro do templo, assistimos a inúmeros rituais, a começar pela confirmação de um chefe Vodum como chefe responsável por Heviosso (Xangô, em iorubá). Depois, vimos uma sequência de danças no interior da casa ao som de tambores, agogôs, chocalhos e outros instrumentos específicos. Muitos deles dançavam levando uma cabra recém-sacrificada com eles.

Eles aparentemente estavam em transe e eram assistidos por inúmeros grandes chefes Vodum da cidade, (entre eles o próprio Daagbo Hounon), que ficavam sentados em volta. De vez em quando, algum chefe se levantava e colocava uma nota de dinheiro na testa de quem dançava ou tocava.

Enquanto isso, alguns grupos de mulheres, vestidas todas com uma mesma estampa de tecido, cantavam músicas (uma puxava a melodia e as outras respondiam em coro, em diversas sequências que se alternavam). Muitas delas, como é comum no Benim, levavam seus filhos nas costas, segurados por panos.

Festival de Vodum no Benin
Festival de Vodum – Arquivo Pessoal

O ritual inteiro era marcado por sacrifícios de animais (principalmente cabras e galinhas), e o sangue dos animais era derramado sobre objetos sagrados, muitos deles voduns em si, ou seja, objetados que materializavam alguma divindade (Orixá, em Iorubá), para “dar de comer aos  voduns”. Uma coisa que chamou a nossa atenção foi o fato de os sacrifícios de animais serem frequentemente públicos, às vezes, no meio da rua. Todas as pessoas com quem conversamos confirmaram que os sacrifícios humanos, que em tempos antigos poderiam até existir, não ocorrem mais.

Na cultura do Vodum, as roupas e vestimentas possuem outros valores quando comparadas à “cultura ocidental”. Para fazer uma dança sagrada, por exemplo, é obrigatório estar de saia, sendo homem ou mulher. Estar sem camisa é muito comum, para homens e mulheres, e inclusive em alguns momentos considerado sinal de respeito. Vimos mulheres sem camisa, em especial senhoras mais velhas, com os peitos à mostra e sem problema nenhum com isso. Em várias danças, mulheres jovens também ficavam nuas da cintura para cima, e isso era visto como completamente normal. Aliás, no interior do Benim, é muito comum ver mulheres sem camisa na rua, já nas grandes cidades, isso é mais raro.

Festival de Vodum - Arquivo Pessoal
Festival de Vodum – Arquivo Pessoal

Após as cerimônias na casa de Daagbo Hounon, as pessoas saíram para a rua, junto com o Pontífice, que ficava debaixo de uma espécie de guarda sol de pano carregado por várias pessoas. Esse grupo ia passando por diversas ruas da cidade até chegar a uma outra casa importante para o Vodum. Então, começou uma nova sequência de músicas, danças e sacrifícios, seguida por uma nova caminhada coletiva, mas dessa vez, para a floresta sagrada de Ouidah.

Na floresta recheada de estátuas simbolizando os diferentes Voduns, o grupo se dirigiu até uma árvore, que contam ser o vodum do rei fundador de Ouidah. Em frente a esta árvore estavam cadeiras, onde a “elite dos sacerdotes voduns”de Ouidah se sentou para presenciar a cerimônia, novamente marcada por sacrifícios e danças. Interessante também, que os chefes claramente gostavam de aparecer e de mostrar sua hierarquia, tirando fotos com outros chefes e mostrando seu poder.

Festival de Vodum - Arquivo Pessoal
Festival de Vodum – Arquivo Pessoal

Acabada a cerimônia, a “elite” saiu em passeata pela a cidade. Informaram-nos, no entanto, que havia uma última cerimônia no dia, às 23:30, da chamada “sociedade secreta Gelede”, que só faz cerimônia em público duas vezes ao ano. Recuperamos nossas forças e fomos até uma praça, onde vimos um grupo de homens cantando e tocando, para depois sair um verdadeiro espetáculo de máscaras e danças maravilhosas, com diversos motivos e configurações. Foi algo bastante marcante, e nos fez lembrar as cerimônias de boi-bumbá.

No outro dia, nos encontramos às 10 horas da manhã em frente ao Templo da Python, no centro de Ouidah, onde a comitiva de Daagbo Hounon partiria até a praia, onde acontece o festival do Vodum. Presenciamos uma quantidade enorme de turistas, que chegaram de toda a Europa para assistir ao festival. O local da festa é a Porta do Não-retorno, na praia de Ouidah, e não é cobrada a entrada. Existe uma estrutura montada (cadeiras e palcos) para dar conforto aos europeus e para as autoridades fazerem seus discursos.

Festival de Vodum - Arquivo Pessoal
Festival de Vodum – Arquivo Pessoal

Quando todas as famílias Voduns chegam, começa uma série de rituais. O melhor é ficar circulando para poder observar as diferentes cerimônias. Apesar da grande quantidade de turistas, é visível a importância do festival para os locais, sendo um espaço de encontro, de luta pela valorização do Vodum, e claro, para mostrar as hierarquias existentes entre eles. Presenciamos danças, e no encerramento, Daagbo Hounon deixou uma mensagem para os participantes.

No nosso regresso à cidade, presenciamos a Burrinha dos De Souza, acontecendo na praça em frente de Singbomey (casa dos De Souza). Paramos nosso itinerário e fomos direto participar deste momento! Que prazer poder escutar músicas em português, sabendo que ninguém fala a língua na cidade, nos últimos 100 anos:

Viva viva viva

A república brasileira

Viva também

Bahia santo salvador!

ou

Queria Cherry, ôôô jo-joana

Bom dia, comu passo, bom brigada

vodum 1Começamos a cantar e dançar com eles, e prontamente nos convidaram para conhecer a famosa casa. Pudemos então conhecer a casa do Chachá, o seu túmulo e conversar com diversos “brasileiros”, que ficaram muito felizes em nos conhecer (e nós então?). Apesar de todos falarem que eram “bons católicos, como brasileiros são”, quando afirmávamos que éramos do Vodum (Candomblé), mudavam o tom, e um deles inclusive, me convidou para participar de uma cerimônia em que ele era um Egungun (mui católico!).

No outro dia, ainda pudemos participar de muitas cerimônias, inclusive, a dos Egunguns, que, no Brasil, é algo bastante raro, e basicamente instalado só na ilha de Itaparica (BA), mas que lá é mais fácil observar.

Apesar de estarmos bastante integrados com os locais, podemos dizer que caímos em cilada de branco! Antes do festival, ficamos com muito medo em relação às fotos, pois todos diziam que não poderíamos tirar, que precisávamos de licença… Resolvemos, então, pagar para um guia (Western Vodoo), para que ele nos guiasse e explicasse. Pois bem, o nosso grupo só tinha brancos, e ele claramente não sabia muito o que acontecia.

vodum 9Na quinta-feira, dia 8, já pudemos ver o quão ridículo era, pois ele nos levou a uma cerimônia vodum encomendada em uma encruzilhada. As pessoas participantes, claramente, não estavam em um contexto ritual, e estavam dando risadas dos brancos tirando fotos deles. O ápice foi o sacrifício da galinha como espetáculo de “horrores”, onde os estrangeiros tiraram fotos, pediram para não sacrificar e etc… Foi ridículo… Fica a dica, em não acreditar nas palavras dos guias, e o melhor mesmo é conhecer os chefes voduns da cidade e perguntar para eles sobre a programação.


Confira aqui a introduçã
o ao Especial Viajando por Benim, Togo e Gana

Veja mais: Passeio pela cidade universitária, Veneza Africana e um pouco de dança

Veja mais: Conheça Ouidah

Bruno Pastre Máximo é historiador e mestrando em arqueologia pela USP e Bernardo da Silva Heer é  estudante de Ciências Sociais pela UNICAMP. Os dois viajaram por Benin, Togo e Gana durante 60 dias e compartilham suas experiências nesse especial

 

 

Por dentro da África 

12 COMMENTS

  1. Engano seu, a Casa das Minas no meu Maranhão continua cada dia mais viva. Maranhão é terra de encantaria, existem incontáveis terreiros de Tambor de Mina, Candomblé nagô e Umbanda. A força ancestral continua pulsante!!!!

  2. Gostaria que o blog publica-se uma matéria sobre as atuais pesquisas arqueológicas efetuadas no Benin e na Nigéria, um tema muito pouco comentado. Melhor falando, simplesmente ignorado.
    E dentro deste contexto, apresenta-se os artefatos descobertos nessas pesquisas e fala-se sobre os museus existentes nesses países.

    Sobre as grandiosas celebrações tradicionais do antigo Reino do Daomé, em honra aos ancestrais da realeza e as divindades, indico a todos a leitura do maravilhoso livro “O Rei, o Pai e a Morte: A religião vodum na antiga Costa dos Escravos na África Ocidental”, de autoria de Luis Nicolau Pares. Leitura obrigatória para o entendimento da cultura e da religiosidade do Benin. E consequentemente, do nosso Candomblé Jeje.
    De certa forma, o livro é uma continuidade de um outro trabalho seu (igualmente relevante) “A Formação do Candomblé: história e ritual da nação jeje na Bahia”.

  3. É simplesmente lamentável a decadência dos cultos as divindades africanas, em seu local de origem. Atualmente a religiosidade tradicional africana, tornou-se um meio de ganho e uma mera atração turística.

  4. Para alguém mais curioso recomendo a leitura do livro abaixo, que a editora portuguesa publicita com a seguinte explicação / resumo:

    ” D. Francisco veio de S. Salvador da Baía em 1812 e, durante mais de trinta anos, foi o melhor amigo do rei do Daomé, mantendo-o abastecido de rum, tabaco, coisas finas e espingardas Long Dane, que não eram feitas na Dinamarca mas em Birmingham. Como recompensa por estes favores, gozava do título de Vice-Rei de Ajudá, do monopólio da venda de escravos, duma adega de Chateau Margaux e dum inexaurível serralho de mulheres. Quando morreu, em 1857, deixou sessenta e três filhos mulatos e um número desconhecido de filhas cuja progenitura, cada vez mais escura, hoje incontável como gafanhotos, se estende de Luanda ao Quartier Latin.
    É sobre esta fabulosa personagem e o seu cruel universo — Ajudá, onde os portugueses ergueram a Fortaleza de S. João Baptista, foi um importante porto do tráfico de escravos — que Bruce Chatwin constrói este seu romance. Entre a ficção e a realidade, O Vice-Rei de Ajudá leva-nos a um estranho país em que os soldados são ferozes amazonas, o poder é absoluto e imprevisível e a feitiçaria e a morte são a realidade quotidiana.”

    O Vice-Rei de Ajudá foi adaptado ao cinema por Werner Herzog no filme “Cobra Verde”.

    É pouco romanceado… e muito do que refere pode ser visto em Ouidah e em Abomey

  5. Efectivamente a descrição efectuada corresponde a uma realidade facilmente verificável em muitos pontos do Benin e particularmente em Ouidah.
    Talvez os viajante não tenham concluído que o próprio nome da cidade é uma corruptela do nome português Ajuda (transformado em Ajudá inicialmente) e que a pequena fortificação existente é de origem portuguesa, onde teve a casa do “governador” de uma antiga concessão e que, penso, ainda deverá alojar um museu inaugurado em 1989 após obras de restauro de todo o espaço pagas pela Fundação Calouste Gulbenkian que cedeu algumas peças destinadas a um “museu da Escravatura”.
    A língua Fon ainda deverá ter (tinha em 1989) muitas palavras portuguesas e eram facilmente encontráveis nomes de família portugueses – os tais Souza, Menezes, Pereiras, etc – pois com algumas interrupções andámos por lá cerca de 400 anos.

    Bastante mais poderia ser dito…

  6. Os homens e mulheres que aportaram no Brasil, dentro de navios negreiros eram, antes de tudo, africanos. Foram, sim, escravizados pelos colonizadores europeus. É importante fazer essa correção ou o racismo e todo o preconceito ao povo afrodescendente ganha mais espaço, ao se falar do continente africano.

  7. Em São Luís, Maranhão há um antigo terreiro de Tambor de Mina ( como é conhecido a tradicional religião afro-brasileira maranhense), a Casa das Minas, que segundo estudos do etnólogo francês Pierre Verger, teria sido fundada pela rainha do Dahomé Nã Agontimé. Na Casa das Minas ainda são cultuados os voduns, principalmente os voduns da familia real de Abomey.