Travessia de bicicleta revela contrastes na fronteira entre África e Europa

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Por Alexandre Costa Nascimento, Por Dentro da África
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Tânger (Marrocos) – Na beira de um penhasco, tendo ao fundo o azul das águas do Mediterrâneo, um pequeno rebanho de cabras pasta tranquilamente. Vestindo um chapéu de palha tradicional e segurando um cajado de madeira, um pastor ignora tudo que se passa ao seu redor enquanto mantém vigilância cautelosa do seu rebanho.

A sensação de quem testemunha essa cena bucólica – que certamente vem se repetindo a cada dia ao longo dos últimos séculos nesta região –, é a de que o tempo parou ou mesmo que ele inexiste por aqui. Essa percepção, entretanto, dura apenas uma fração de segundo; mais precisamente, até o exato instante em que voltamos a nos dar conta de que estamos em um dos pontos geoestratégicos mais importantes do planeta.

O Estreito de Gibraltar é a única conexão entre o Atlântico e o Mediterrâneo, uma via por onde passa boa parte do comércio marítimo mundial. Pelas águas do Estreito navegam, em média, dez navios por hora – são 85 mil embarcações por ano, que fazem desta uma das rotas de navegação mais movimentadas do mundo. Daí sua importância histórica e estratégica. E os séculos de lutas, conquistas e reconquistas, disputas e contenciosos territoriais, alguns dos quais permanecem vivos até hoje.

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Alheio a tudo, o pastor cuida das cabras. Seu mundo é estrito às margens da estada N16 de um lado e pelas águas do Mar de Alborão do outro. Na outra margem, ao norte, podemos ver a Europa. Mas o que separa os dois continentes não é apenas um estreito geográfico; é um largo e profundo abismo que existe apenas na direção Sul-Norte, mas nunca ao contrário. A probabilidade de que o pastor um dia atravesse o estreito e alcance o outro lado do horizonte é a mesma de que as suas cabras comecem a botar ovos. De ouro!

Delírio Ibérico

download-(4)O fortuito encontro com o pastor ocorre em algum ponto da montanhosa e sinuosa N16, estrada entre a cidade de Tânger e o enclave espanhol de Ceuta, no norte do Reino de Marrocos. Exatos quatro anos depois de ter atravessado a África do Cairo à Cidade do Cabo de bicicleta, volto ao continente sobre duas rodas.

Saiba mais: Brasileiro que cruzou a África de bicicleta lança livro 

Desta vez a expedição chama-se Delírio Ibérico. A aventura de mais de 1 mil quilômetros teve início Lisboa, desceu Portugal em direção ao Sul pela Costa da Caparica, Serra da Arrábida, Costa Vicentina, Sudoeste Alentejano e Algarve.

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Em seguida, cruzou a fronteira com a Espanha, seguiu pelo litoral sudoeste da Andaluzia, cruzou o Parque Nacional de Doñana até a cidade de Tarifa, já na região do Estreito de Gibraltar. Ao meu lado a Gaja, minha bicicleta lusitana, e Andreza, minha companheira de vida, desta e de outras tantas aventuras.

O 13.º dia da nossa viagem é especial. Nem tanto por ser o derradeiro da aventura, mas sim pela possibilidade que ele nos oferece de percorrermos, de bicicleta, em apenas um dia, três países e dois continentes. E de cruzarmos a fronteira que separa dois mundos.

Nas vielas de Tânger

Por Alexandre Costa Nascimento, Por Dentro da África
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O último dia da nossa viagem começa em Tânger, cidade que tivemos a oportunidade de conhecer e explorar ainda no dia anterior. Um sítio onde vale a pena deixar-se levar sem rumo ao percorrer as caóticas e labirínticas vielas na região do souk, o mercado central.

As frutas coloridas, especiarias, tâmaras e azeitonas expostas nas bancadas são
convidativas. Por outro lado, estômagos sensíveis podem se revirar diante da presença de pombos mortos ainda com as penas, expostos na bancada do açougue ao lado de carne infestada por moscas e cascos e chifres de carneiro.

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De qualquer maneira, me arrisco a comer comidas de rua cujo nome não sei, os ingredientes não quero saber e o modo de preparo prefiro simplesmente ignorar para não quebrar toda a magia desta intensa experiência gastronômica.

São ainda dignos de nota o saboroso e encorpado café marroquino e o ultra-adocicado chá com menta – bebidas quentes que são consumidas em salões frequentados exclusivamente por homens e, de quando em quando, por turistas desavisados e suas esposas. O efeito estimulante da cafeína presentes nas duas bebidas é usado como alternativa ao álcool, cuja venda e consumo são restritos pela religião islâmica, seguida por 99% da população marroquina.

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Nossa passagem pela cidade também coincide com a realização do 14.º Festival de Cinema Africano de Tarifa e Tânger. A expectativa de aproveitarmos a oportunidade para conhecer um pouco da produção cinematográfica africana independente, entretanto, é frustrada quando, já na fila da bilheteria do Cinéma Rif, descobrimos que o filme daquela noite é todo em árabe com legendas em francês. Merde! Nous ne parlons pas français! Wala natakalam alearabiata!

Como alternativa para superar tal frustração, decidimos seguir pelas ruelas da região do souk até encontrarmos o restaurante Rif Kebdani, recomendação de um amigo que já estivera na cidade. E não há do que se queixar: jantamos um delicioso couscous – se não o melhor que já comi em toda minha vida, certamente, o mais marroquino de todos – e um tagine de cordeiro, este sim, inigualável e insuperável, qualquer que seja o termo de comparação.

Com o cair da noite, voltamos pedalando ao camping Miramonte, localizado no alto de uma colina próxima à praia de Merkala. Ao chegarmos, converso brevemente com Mouhamed, o jovem responsável por tomar conta do local, que demonstra grande interesse por nossas bicicletas e querer saber um pouco mais sobre nossa aventura.

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Ele fica entusiasmado quando revelo minha nacionalidade. “Um brasileiro por aqui? Uau, isso nunca aconteceu antes!”. A frase, dita em inglês com um sotaque árabe carregado, revela a surpresa do jovem, acostumado a receber apenas turistas europeus e norte-americanos.

Inevitavelmente e de forma quase automática, a conversa passa ao campo do futebol. Ele me conta ter assistido na noite anterior a partida entre o time do Santos e o Santa Cruz, válida pela Copa do Brasil. Em seguida, passa a desfiar um por um o nome de jogadores brasileiros atualmente na Europa, seus times de origem no Brasil e tantas outras coisas que poucos brasileiros, mesmo os mais fanáticos pelo desporto chute-bola, teriam capacidade de conhecer com tamanha precisão. O futebol continua a ser o soft-power brasileiro, mesmo após o 7 x 1.

O papo do futebol avança, tabela com a política e lança a conversa na área da realidade que coloca dois mundos em campos opostos. “É quase impossível cruzar o estreito. Tudo é planejado para não nos permitir chegar do outro lado”, diz-me Mouhamed, com ar amargurado. “Tudo aquilo do lado de lá também já foi nosso por muito tempo”, diz o jovem, em óbvia referência histórica à ocupação muçulmana da Península Ibérica que durou quase oito séculos.

Com o emprego do camping e estudando, o jovem se resigna ao sonho de, quem sabe um dia, juntar dinheiro suficiente e ter todos os documentos que lhe permitam atravessar a fronteira legalmente como turista e realizar o sonho de pisar no solo europeu.

Mas há quem arrisque a própria vida na esperança de chegar do outro lado. A Organização das Nações Unidas (ONU) calcula que, desde o início de 2017, cerca de 2 mil pessoas morreram tentando cruzar as águas do Mediterrâneo. Embora não esteja no epicentro da chamada crise dos refugiados, a região do Estreito de Gibraltar contabilizou 388 mortes em 15 meses, de acordo com levantamento da ONG espanhola Caminando Fronteras. Muitos tentavam cruzar os 14,4 quilômetros que separam os dois continentes a nado ou em embarcações improvisadas.

Destino: Ceuta

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Pedalar pelas rodovias do Marrocos está longe de ser seguro como um passeio pelas estradas europeias. Na prática, a probabilidade de ser vítima de um acidente automobilístico fatal aumenta mais de 460% quando se atravessa o Estreito.

De acordo com dados do Road Kills Map, do Centro Pulitzer, o Marrocos registra 20,8 mortes no trânsito para cada grupo de 100 mil habitantes, contra 3,7/100 mil na Espanha e 7,8/100 mil em Portugal. Para um ciclista, a chance de um acidente fatal é 360% maior no Marrocos do que na média dos dois países ibéricos.

Mas sequer é preciso recorrer aos números e estatísticas se dar conta do perigo. Repleta de curvas, subidas e descidas, a N16 é majoritariamente em pista simples, sem acostamento e conta com intenso movimento de caminhões que transportam cargas entre a cidade de Tânger e o porto de Tangier-Med 2, um dos maiores e mais movimentados portos do Mediterrâneo e de toda a África.

Pedalar nestas condições torna tudo mais tenso e estressante, uma vez que qualquer descuido ou deslize pode custar caro e ter consequências graves. Mas isso não significa que não seja possível aproveitar os encantos e se surpreender com as belezas que se escondem e se revelam a cada curva da estrada – e elas são muitas.

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Pedalando praticamente o tempo todo rumo ao leste, temos à nossa esquerda uma vista privilegiada dos penhascos e do Mar Mediterrâneo. À direita, estão montanhas e vales verdes, salpicados por flores coloridas que marcam a chegada da primavera.

Na localidade de al-Qsar as-Seghir, as ruínas de uma antiga fortificação do século XII dão testemunho das disputas por uma terra que já foi ocupada ao longo dos séculos por fenícios, romanos, portugueses e árabes.

Situada ao pé do que já fora um castelo, a praia de Ksar-Sghir permanece deserta, ainda que se trate de uma quente e ensolarada tarde de sábado. Além do casal de cicloturistas brasileiros, apenas uma mulher trajando um niqab — vestimenta árabe que cobre praticamente todo o rosto das mulheres, com exceção de uma abertura nos olhos – caminha pela praia, enquanto acompanha uma garotinha que brinca com a areia.

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De volta à estrada, alguns quilômetros adiante, o fluxo de tráfego é interrompido por um congestionamento nas cercanias da cidade de Alcácer-Ceguer. Os dois lados da via estão tomados por pessoas que circulam em meio a camionetes com melancias na caçamba, carroças apinhadas de frutas e pilhas de legumes expostos no chão.

O som rachado de um alto-falante que reproduz freneticamente frases gritadas em árabe, de tão alto, parece capaz de encobrir até mesmo a voz do nosso próprio pensamento. Todo o tumulto é por conta de uma feira livre que é uma verdadeira explosão sensorial de sons, cores, cheiros e sabores.

O espaço estreito dos corredores entre as barracas, no qual mal uma pessoa consegue passar com conforto, é disputado com intensidade por três ou mais pessoas, debochando da lei de Newton que diz que dois corpos não podem ocupar o mesmo lugar no espaço ao mesmo tempo. A sensação é a de que alguém com síndrome do pânico não resistiria por mais de três segundos neste ambiente. Tudo é intenso e marcante.

Ao contrário do souk de Tânger, frequentado por turistas dos quatro cantos do mundo, o mercado de Alcácer-Ceguer é realizado em uma região interiorana, fora dos eixos turísticos tradicionais do país. Desnecessário dizer que é impossível a dois forasteiros passarem incólumes e anônimos no meio da multidão; ainda mais quando vestidos com roupas coloridas de ciclismo, capacetes estranhos e empurrando bicicletas no meio de toda a muvuca.

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Já de saída, paro em frente a uma barraca e não resisto diante de uma montanha de tâmaras. Em troca de uma moeda de 10 dirham – equivalente a 0,90 € ou R$ 3,40 — recebo uma sacola com quase meio quilo do fruto — a mesma quantidade em uma rede de supermercados em Portugal não sairia por menos de 5 euros (R$ 18,80).

O mix de tâmaras doces, salgadas, secas, caramelizadas e in natura, juntamente com um pão e uma lata de atum, tornam-se o nosso almoço. A refeição é desfrutada no topo de uma subida dura e infindável, com a vista panorâmica ao Tangier-Med 2 e da represa da barragem de Oued Rmel, cuja hidroeléctrica abastece toda a região.

Seguindo pela N16, após uma longa descida — afinal, a máxima de que tudo que sobe tem que descer também vale para os ciclistas! –, chegamos ao leste da Península Tingitana, onde a estrada se divide em duas: em direção ao sul, está a cidade de Fnideq, pertencente ao Reino de Marrocos; ao norte, fica a cidade autônoma de Ceuta, um enclave espanhol em África.

A chamada fronteira de Tarajal é formada por uma barreira de 8 quilômetros de extensão, composta por duas cercas de seis metros do lado espanhol e uma cerca de dois metros do lado marroquino. Construídas ao custo de 30 milhões de euros, as barreiras feitas de arame e cabos cortantes são mais do que apenas uma separação física dos dois territórios; elas são o símbolo concreto do esforço hercúleo que a Europa faz para manter o sul o mais distante quanto possível de si.

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Fronteira de Tarajal

A extensa fila de carros que se forma cerca de um quilômetro antes da aduana é um indício claro de que não é tarefa das mais simples atravessar a fronteira entre o Marrocos e o território espanhol de Ceuta – uma porção europeia na África.

O ambiente é caótico. Som de buzinas, gritos de vendedores ambulantes e um movimento frenético de pessoas que buscam atravessar a fronteira a pé. Coiotes tentam contrabandear mercadorias, jogando caixas sobre as altas cercas de alambrado para o outro da fronteira, apesar da vigilância cerrada da Guardia Nacional Espanhola do lado de lá. Outros tentam vender por 1 euro aos turistas incautos um formulário amarelo – cujo preenchimento é obrigatório para declarar a saída do Marrocos. Porém, o mesmo papel é distribuído gratuitamente alguns metros mais adiante, no posto fronteiriço.

Um a um, os carros passam pelos guichês que fazem o controle de saída do lado marroquino. Documentos são checados, passaportes carimbados e alguns veículos, aleatoriamente, passam por vistoria em busca de drogas, armas ou tráfico de pessoas.

Tudo é moroso e a paciência torna-se a maior das virtudes diante de uma espera de até duas horas sob o sol escaldante. Paciência, aliás, que falta no encontro entre um taxista e o motorista de uma van. A disputa por espaço quando a fila de veículos se afunila escala rapidamente de uma buzinada para um xingamento e de um bate-boca para as vias de fato — a troca de socos só é interrompida quando um policial marroquino se aproxima e detém um dos brigões, já com o rosto ensanguentado.

Para quem se atreve a cruzar a fronteira de bicicleta, há uma vantagem competitiva: a de não ter de esperar na fila. Por indicação de um policial, somos orientados a pular à frente, direto para o posto da aduana.

Trâmite burocrático padrão: formulário preenchido, ok; passaporte, ok; olha a foto, olha o rosto; ok. O fiscal então vira-se para um colega e aponta para a capa do passaporte e exclama: “Brasil!”. Os dois riem entre si. Ele carimba o passaporte, fecha a cara e o documento e me devolve.

Alguns metros adiante, tudo se repete para a entrada no território espanhol. Antes de qualquer coisa, o fiscal pergunta se portamos o passaporte de Ceuta, documento especial que permite o trânsito facilitado de pessoas entre a fronteira – em geral, ele é concedido a trabalhadores que vivem de um lado e trabalham do outro. Diante da negativa, apresentamos os passaportes brasileiros e a preocupação do fiscal passa então a ser a de verificar os últimos carimbos de entrada e de saída da União Europeia para conferir se não houve o vencimento do prazo limite de 90 dias de permanência para turistas. No meu caso, o título de residência emitido por Portugal serve de salvo-conduto e garante o ingresso no território de Ceuta.

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Nem bem deixamos o posto da aduana e podemos ver dois soldados da polícia espanhola levando detido um homem que acabara de pular uma das cercas para adentrar ilegalmente no território espanhol – cena esta que se repete várias vezes, durante dia e noite, na fronteira de Tarajal.

Apenas em fevereiro deste ano, cerca de 900 imigrantes cruzaram em massa a fronteira em um período de apenas três dias – 500 deles na madrugada do dia 17 de fevereiro. Alguns foram alvejados pela polícia espanhola com tiros de bala de borracha enquanto nadavam no mar. Dezenas morreram afogados. O braço da ONG Anistia Internacional na Espanha considera a situação fronteiriça como uma “tragédia inominável”.

Entre Ceuta e Gibraltar

Quem conclui a travessia da fronteira, legalmente ou não, se dá conta que chegou ao norte quando vê uma placa azul com doze estrelas douradas dispostas em círculo — símbolo da União Europeia –, sobre a palavra “Espanã”. Estamos na África. Mas também estamos na Europa.

Juridicamente, Ceuta é uma cidade autônoma pertencente ao Reino de Espanha. Sua posição geográfica é garantia do controle estratégico do Estreito de Gibraltar. O território tem 82,3 mil habitantes e goza de estatuto especial de porto franco, que garante uma série de isenções fiscais para as atividades comerciais e fomenta o desenvolvimento da economia local.

Há cerca de quatro décadas, o governo do Marrocos reivindica a posse dos territórios de Ceuta e Melilla – outro enclave espanhol ao norte do Marrocos –, como sendo parte indissolúvel de seu território, considerando a presença espanhola como uma ocupação colonial. A Espanha, por sua vez, jamais reconheceu a legitimidade desta demanda marroquina e nunca estabeleceu qualquer tido de negociação ou canal diplomático para discutir a soberania destas áreas.

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No campo diplomático deste embate, Marrocos tem o apoio de entidades regionais como a União Africana e a Liga Árabe, que reconhecem Ceuta como território marroquino. Tal gesto, no entanto, tem apenas valor simbólico e não muda em nada realidade objetiva.

Uma vez em Ceuta, o tempo escasso não nos permite muito mais do que uma pedalada pela orla sul do istmo e uma breve pausa para contemplar as Muralhas Reais, a Praça de Armas e o Fosso Navegável, conjunto histórico-arquitetônico de defesa que datam de época da dominação árabe e que foram passando por transformações ao longo dos séculos.

No porto, tomamos a embarcação como destino a Algeciras, na Espanha continental. Entre sair do Marrocos e pisar novamente no continente europeu, passamos por cinco postos de controle e verificação de documentos, sendo dois na fronteira, dois no embarque em Ceuta e um no desembarque em Algeciras.

De volta ao Velho Continente, seguimos com nossas bicicletas em direção à La Línea de la Concepción, cidade espanhola que faz fronteira com o território britânico ultramarino de Gibraltar.

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Embora tenha apenas um milésimo da dimensão do território espanhol, o rochedo de 6,8 quilômetros quadrados é tema sensível na agenda diplomática de Madri. Cedido à Grã-Bretanha pelo Tratado de Utrecht em 1713, “para sempre, sem qualquer exceção ou impedimento”, o território é reivindicado pela Espanha perante o Comitê de Descolonização das Nações Unidas desde a década de 1960.

Nos últimos anos, a construção de um sentido de unidade europeia baixou um pouco a temperatura desta disputa e ajudou a estabelecer um fluxo de pessoas e certa integração econômica entre os dois territórios. A fronteira terrestre de 1,2 quilômetro – a menor fronteira terrestre entre dois estados –, que fora completamente fechada durante o franquismo, hoje é uma aduana que se cruza com relativa facilidade, sendo necessário apenas apresentar um documento de identificação válido. Carimbo, só mesmo para turistas que fazem questão de ostentar a estampa oficial de Gibraltar no passaporte como lembrança.

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Mas a saída da Grã-Bretanha da União Europeia, na esteira do Brexit, pode reascender de maneira intensa a disputa pelo território, já que a Espanha manifesta que não é possível qualquer acordo entre a UE e os britânicos sobre a questão de Gibraltar sem o consentimento de Madrid. Dentro desta lógica, a UE, que sempre manteve-se neutra na disputa, tende agora a alinhar-se às demandas da Espanha, Estado membro da União, em detrimento da Grã-Bretanha, que está em processo de ruptura com o bloco.

O tom também já subiu nos discursos, com troca de farpas e políticos governistas britânicos mais radicais evocando a memória da Guerra das Malvinas (Falklands, para os britânicos) como uma possível “resposta” britânica à questão da soberania do Rochedo.

Em meio aos interesses de Londres e Madrid, os gibraltarianos, instados a se pronunciarem duas vezes através de referendos, em 1967 e 2002, rejeitaram com 99% a proposta de ter a soberania do território cedida total ou parcialmente à Espanha. Por outro lado, apenas 4% da população local foi a favor do Brexit em 2016.

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Uma saída possível para o impasse seria Londres ceder autonomia ao território de Gibraltar e este manter-se como um Estado membro da União Europeia. Ao que parece, é este o desejo dos 32 mil habitantes do Rochedo.

Nossa jornada ciclística de 120 quilômetros por três países termina oficialmente em um pub, no North District de Gibraltar. Com direito a uma pint de London Pride, chips e jogo da Premiere League na televisão. Entre a melancolia do fim da viagem e o prazer da conquista de cruzar a linha de chegada imaginária, entre um gole e outro, um pensamento ingênuo, quase infantil, corre pela minha cabeça: como seria se todos pudessem viver em um mundo sem fronteiras?

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