A desconstrução da ideia de mulher em contextos africanos: Diálogos com Oyèronkè Oyèwúmi

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Oyeronke Oyewumi – Foto de Stine Bøe

Fernanda Chamarelli de Oliveira e Washington Santos Nascimento, Por dentro da África

Diferentes versões de extrema direita (e grupos a elas associados) têm trazido com força ideias modelares de “família tradicional” e noções estáticas do que seja um “homem” ou mulher”, reafirmando que tais concepções têm sido subvertidas por aquilo, que no Brasil, por exemplo, tem disso chamado de “ideologia de gênero”. Tais verbalizações personificam toda uma ordem de conhecimento normativo que deriva de uma prática discursiva nascida no continente europeu e que desconsidera uma multiplicidade de construções culturais e impõe sobre o restante do planeta suas próprias normatividades.

Só entendemos como esta ordem de discurso ainda se faz presente quando lembramos que o colonialismo/totalitarismo/autoritarismo e suas ideias não acabaram com o fim dos regimes coloniais, ou seja, grande parte dos atuais modelos de explicação e ordenação do mundo foram construídos pelo Ocidente, de acordo com os seus interesses econômicos, políticos, sociais e religiosos, partindo da normatividade: família nuclear, homem, mulher, branco, hétero e cristão para identificar, classificar e dominar o resto da humanidade.

Desconstruir esses padrões que trazem consigo toda uma ordem de opressões (que não cessam apenas na dimensão epistêmica, mas também nas áreas econômicas e sociais) se insere dentro de um amplo desafio intelectual e político, proposto por diferentes áreas e pesquisadores, que poderíamos chamar de descolonização do conhecimento e consequentemente diversificação (e mesmo fim) dos padrões normativos do mundo. Neste sentido, diferentes pensadores/as e intelectuais africanos têm militado neste campo.

A socióloga nigeriana Oyèronké Oyèwúmi, por exemplo, nos lembra que nas sociedades contemporâneas “negociações familiares, se não valores familiares, estão em toda parte” e que tais discursos têm sido extremamente úteis para legitimar opressões. (Oyèronké Oyèwúmi, 2000).  Pensar de que forma os estudos sobre a desconstrução das categorias de gênero, mulher e família nuclear feitos por esta pensadora nigeriana no contexto Oyó-Yorubá nos ajuda no processo mais amplo de descolonização epistêmica e consequentemente combate as opressões é o desafio que propomos neste texto.

  1. Oyeronke Oyewumi: alguns apontamentos biográficos e influências.

Oyeronke Oyewumi é nigeriana, socióloga e professora na Stony Brook University, em Nova Iorque, nos Estados Unidos. Seus estudos tratam de debates sobre gênero, teoria feminista e globalização, visando discutir a experiência africana a partir de conceitos e epistemologias que estejam ligados a sua cultura. Suas principais obras são: “What Gender is Motherhood?: Changing Yorùbá Ideals of Power, Procreation, and Identity in the Age of Modernity”; “Gender Epistemologies in Africa: Gendering Traditions, Spaces, Social Institutions and Identities” e African Gender Studies: A Reader; African Women and Feminism: Reflecting on the Politics of Sisterhood.

Em grande parte, seus estudos fazem crítica (presente em outras pensadoras como  Bibi Bakare-Yussuf e Ifi Amadiume) ao feminismo ocidental como impositor de experiências e estruturas históricas próprias para outras sociedades e aplica conceitos ocidentais como gênero e patriarcado. As ideias propostas pelas autoras nos levam a refletir sobre outras formas de organização social e de concepção da maternidade e do papel social exercido pela “mulher”.

Como elas ressaltam as relações de gênero e o patriarcado, são sistemas históricos (e instáveis) de poder construído na modernidade, no processo do comércio de africanos pelo Oceano Atlântico que provocou nas sociedades Yorubás, mas também em parte do continente, mudanças profundas na estrutura social baseada na idade para uma nova hierarquia baseada no gênero. Estas mudanças foram ainda mais acentuadas quando ocorreu a territorialização do colonialismo europeu, em fins do século XIX e primeira metade do século XX.

Oyëwùmí faz parte de um grupo de pesquisadores africanos que buscam categorias/entendimentos endógenos e anteriores ao período da colonização, para pensar o continente. Para autora, o pensamento ocidental teve tão forte penetração e uma profunda aceitação pelas intelectualidades africanas que gerou versões africanas sobre obras ocidentais, havendo uma distorção daquilo que é particular para a lógica cultural das sociedades ocidentais e o que é universal, no sentido de uma verdade essencial. Neste sentido ela é de alguma maneira herdeira de pensadores como um dos pais da “filosofia africana”, o “Beniense” (mesmo tendo nascido na Costa do Marfim), Paulin j. Hountondji.

Hountondji defende a pluralidade e o dinamismo interno das culturas africanas (saberes endógenos) e afirma que o entendimento correto sobre o continente só se dará em uma perspectiva endógena pluriversal, daí o seu entendimento de filosofia não como um sistema, mas sim como uma atividade, diversa e relacional. Além disso defende que tal ordem de conhecimento parta dos povos africanos, de dentro para fora do continente e não ao contrário, afinal, os africanos são mais falados, do que falam e mesmo aqueles que falam, muitas vezes, interiorizam o discurso colonial, usando o seu repertório de palavras, ideias, conceitos, assumindo que as manifestações ocidentais para a condição humana são universais e representam a condição humana por si própria, ou seja, usando o que Valentim Mundimbe (2013) chamaria de “Biblioteca Colonial”. Romper com esta biblioteca é um dos desafios que também se impõe Oyèronké Oyèwúmi em seus estudos sobre os conceitos ocidentais de gênero e mulher.

  1. Oyèronkè Oyèwúmi: descolonização epistêmica e novas perspectivas

O processo de ocidentalização que também influenciou o continente africano trouxe diferentes formas de opressão, uma das mais destacadas foi a dos “homens” sobre as “mulheres”, com a instituição do patriarcado em diferentes regiões da África. As aspas que colocamos já revela que tais categorias foram criadas de fora para dentro, assim sendo o termo ‘mulheres’ foi criado pela sociedade patriarcal com o objetivo de torná-las o ‘outro’ e consequentemente oprimi-la.

A hierarquia social e a noção de diferença nas sociedades ocidentais têm como base fundamental o substrato biológico, que é responsável pela imposição de uma superioridade e uma certificação de um domínio daquele considerado como o “um”, dentro de um padrão normativo e hegemônico que rege estas sociedades, sobre aqueles que são considerados “outras” ou “outros”. Essa dominação é ratificada pela diferença, que não é compreendida por si só, mas que denota uma inferioridade biológica e que, por sua vez, fundamenta as situações de desvantagens sociais.

Esse substrato biológico que designa e diferencia os corpos na sociedade ocidental é, para autora, determinista, pois limita e faz julgamentos de fora para dentro a partir de estereótipos consagrados pela construção de pensamento, e determinante, pois é a partir da visualização destes corpos que se restringe o espaço social que pode ser ocupado (ou não) por determinados indivíduos.

  • A não absolutização dos corpos

A sociedade ocidental para Oweyumi é constituída por corpos e como corpos, partindo de duas concepções que esta palavra pode assumir, sendo o corpo pensado a partir de suas características biológicas e aquele entendido como o que enfatiza o caráter físico que ocupa na cultura ocidental, que pode ser exemplificado com expressões como “corpo político” e “corpo social”. Desta forma, o corpo alcança uma lógica própria – corpos femininos, masculino, ricos, pobres, negros, brancos, entre tantos- permitindo que através de sua visualização se possa inferir sua posição social e características em comum que estariam relacionadas aos “corpos sociais” aos quais estes pertencem.

Essa centralização do corpo na sociedade ocidental, como aquele que diferencia e que marca posições sociais, está diretamente relacionada à percepção do mundo a partir da visão. Observamos a relevância desta questão quando nos atentamos a expressões a nós tão cotidianas como “ponto de vista” e “visão de mundo”. A lógica cultural do ocidente tem como sua base primordial a dimensão visual. O corpo não se desvincula da constituição da posição social, e portanto, todos os “corpos” que foram qualificados como “diferentes” em diversos períodos históricos, onde podemos citar pobres, africanos, mulheres, judeus, entre outros, foram (e são) classificados enquanto inferiores.

Os corpos foram marcados pela diferença, e estes mesmos corpos consagram a diferença e a hierarquia, posto que o mundo social está organizado a partir de uma interpretação biológica. Os sujeitos sociais não se apresentam enquanto indivíduos, mas enquanto parte de agrupamentos, de “corpos sociais”, sendo estes considerados como geneticamente constituídos. Entre os binarismos, tão caros ao pensamento ocidental, aquele que opunha corpo, que estava relacionado ao lado imoral da natureza humana, ligado às emoções, à mente, que era associada à razão, uma elevação frente as fraquezas que eram vivenciadas pela “carne”, foi um enfoque essencial para que houvesse uma marca determinante nos corpos “inferiorizados”, e ao mesmo tempo uma superexposição destes.

O determinismo biológico que então posiciona certos indivíduos em lugares específicos, como que atuando em um enquadramento possível para estes “corpos” inferiorizados, que só adquirem significado a partir de sua relação – pautada na visão – com o “um”, posto que estes assumem a posição do “outro”. Ainda que compreendido como uma construção social, que seja entendido que as diferenças não são decretadas pela natureza, ambos se retroalimentam. A construção social e o determinismo biológico se reforçam mutuamente, visto que categorias sociais como a de gênero tem sua base nas explicações biológicas para justificar sua existência. Essas próprias explicações se constituem e se constroem socialmente.

  • A inexistência da família nuclear e da mulher em contextos africanos

Em suas diferentes obras, e mais particularmente em The Invention of Women, a autora critica o universalismo da ideia de gênero, família nuclear e mulher a partir dos modelos europeus. Discute o conceito de gênero presente na narrativa ocidental e argumenta que existe uma lógica cultural no Ocidente que categoriza os papeis sociais de acordo com um determinismo biológico. Os gêneros masculino e feminino são diretamente associados ao sexo biológico e determinam os papeis exercidos por homens e mulheres na sociedade. Para autora, essas categorias foram impostas nas leituras e interpretações realizadas sobre as sociedades africanas.

A socióloga aponta que o discurso feminista se encontra enraizado no núcleo familiar, e neste, a mulher é sinônimo de esposa. Esse discurso vem utilizando a categoria de gênero como base para reflexão acerca das questões de subordinação da mulher, a sua opressão e a desigualdade presente nas estruturas sociais. Porém, este discurso não está considerando a questão da categorização de gênero ser, antes de tudo, uma construção sociocultural. Assim sendo, a própria categoria social de mulher não é universal, e a análise a partir da categoria de gênero não é suficiente para compreender todas as formas de opressão e desigualdades presentes nas sociedades, pois existem diferentes grupos de mulheres que são afetadas por estas questões de diferentes formas, sendo portanto necessário também considerar outras categorias, como as de raça e classe, não podendo o conceito de gênero ser abstraído do contexto social no qual se insere e nem pensado sem que esteja relacionado a outras formas de hierarquia.

O discurso feminista tem relevante contribuição para compreensão da estrutura em que se funda a sociedade ocidental, uma estrutura de hierarquização dos corpos, tornando assim explícita a natureza do gênero enquanto fundamentada nesta diferenciação corporal, e mostrando o predomínio masculino em instituições e discursos ocidentais. A partir deste discurso se desnuda a ideia assentada nos binarismos que associavam o homem com a razão, a mente e a cultura, e a mulher com o corpo, a emoção e a natureza. As diferenças de gênero passam a ser entendidas e debatidas a partir de seu ponto fundamental que é o das características biológicas. As categorias de gênero ganham assim um significado físico que é essencial para sua interpretação sociocultural, pois é sobre estas que fundam as categorias sociais.

A busca por uma identidade de gênero e os debates acerca das relações entre as categorias de sexo e gênero, entendendo estas como existentes em todas a sociedades, como categorias universais, são as principais críticas ao discurso feminista feitas por Oweyumi. Na tentativa de compreender diferentes sociedades, diferentes tempos e espaços, partindo da lógica cultural binária do pensamento ocidental, o feminismo apresentaria um discurso de características etnocêntricas tal qual aquele que deseja subverter. Com concepções inicialmente universalistas, o discurso feminista traz consigo preocupações e perguntas que são aplicadas para entender diferentes sociedades, mas que são formuladas através de questões pertinentes a sociedade ocidental. Não há aqui uma desconsideração da contribuição dos estudos feministas, mas uma análise que as categorias e conceitos utilizados em seus discursos atendem a uma lógica cultural particular.

Debatendo sobre a não universalização do conceito de gênero, a autora aponta que o papel social exercido pela mulher nas sociedades europeias e americanas não é observado fora daquele fundamentado pela família nuclear, entendida como sendo formada por um par com gêneros bem estabelecidos, uma esposa subordinada, um marido de poder patriarcal e os filhos. A mãe é antes de tudo esposa o que parece esclarecer a expressão mãe solteira. Sendo o gênero o princípio fundamental de organização da família nessas sociedades, ele também é definidor de hierarquias, mesmo porque, dentro das famílias nucleares a classe e a raça não são normalmente variáveis.

Se o gênero é entendido enquanto uma construção social, também o deve ser como um fenômeno histórico e cultural. A partir desta reflexão percebemos que em algumas sociedades essa construção de gênero nunca chegou a acontecer. O prisma da diferenciação biológica, que orienta a formulação de teorias nas sociedades ocidentais não é uma lógica aplicável em termos universais.

As hierarquias sociais que dele resultam também não o são. No ocidente, as categorias de sexo e gênero não são separáveis, pois os corpos físicos sempre assumem o papel de corpos sociais, portanto, não há distinção de significado entre os termos. Da mesma forma, o uso de termos como homem, mulher e patriarcado resultam de uma manifestação hegemônica do pensamento ocidental sobre outras formas distintas de classificações culturais. A diferenciação entre corpos masculinos e femininos é própria do ocidente, tendo sua base na preponderância do sentido da visão e nos aspectos biológicos, mas sendo também constituintes de uma realidade histórica e social particular.

Ela argumenta no sub-grupo Oyo-Yorubá do qual extraiu os dados, não haveria mulheres na definição estrita de gênero. A gravidez e o parto assumem relevância por estarem relacionados com a procriação, e apenas por isto. Funções sociais como a de quem será o governante, quem realiza o cultivo ou quem pode comercializar no mercado, não estão diretamente relacionadas a fatores biológicos como marca e diferenciação dos corpos, mas são questões propriamente sociais. A anatomia e a biologia não assumem papel fundamental nesta construção social.

Os trabalhos de Oyeronke Oyewumi (mas também de Ifi Amadiume) afiguram-se enquanto uma ruptura epistêmica nos estudos de gênero. Segundo ela nas sociedades africanas é preciso ter uma compreensão relacional da subjetividade (não-dicotômica), ou seja, a identidade não é constituída em oposição ao que é outro, mas em relação à alteridade, ou seja, as categorias sociais africanas são fluídas e não se encaixam nas teorias hegemônicas.

Assim sendo, como já dissemos, ela rompe com a ideia de que o biológico é igual ao social (ideia do corpo como a base da hierarquia social). O que distinguia a sociedade Yorubá não era o “gênero”, mas sim a senioridade, sendo que ela é relacional e situacional, não é necessariamente dada, ou seja, ninguém ocupa para sempre uma posição sênior (de “mais velho”) ou junior (de “mais novo”).

Na cultura Oyó anterior ao século XIX, o aspecto físico da masculinidade e da feminilidade não se constituíam em categorias sociais e não eram definidores de hierarquias. A hierarquia social era constituída por relações sociais, ou seja, pelas relações que as pessoas estabeleciam entre si. A posição de cada pessoa nas diversas relações sociais estabelecidas dependia de quem compunha cada situação em particularidade. Desta forma, as relações sociais não tinham o caráter de rigidez, como as definidas pelo gênero e por aspectos biológicos, mas eram fluidas, sendo o princípio organizador da sociedade a senioridade.

Enquanto a compreensão da realidade no pensamento ocidental tem como sentido privilegiado a visão, na cultura yorubá, bem como presente em outras sociedades africanas, a realidade é percebida a partir da incorporação de uma variedade de sentidos, ultrapassando a centralidade da aparência. A pessoa tem uma presença particular no mundo, e este é entendido como um todo no qual estão vinculadas todas as coisas. O fundamento de todas as relações então desenvolvidas nesta sociedade é dinâmico e relacional.

Para sustentar as suas ideias Oyewumi se serve da linguística, segundo ela categorias como ‘masculino’ e ‘feminino’ são de difícil tradução linguística, as traduções de masculino (‘Okùnrin’) e feminino (‘Obinrin’) “não se referem a categorias de género conotadas com privilégios ou desvantagens sociais” (OYEUMI, 1997, p.38). Da mesma forma não há palavra que designem menino ou menina e sim a palavra omo, que dignifica descedência ou prole.

Analisando os termos utilizados nas traduções realizadas da língua yorubá para o inglês, aponta que a tradução feita do termo iyawo como esposa, não corresponde a seu verdadeiro significado na língua yorubá. O termo oko, que no inglês foi traduzido como marido, tampouco o pode ser associado quando se analisa a organização social yorubá. Os termos oko e iyawo eram usados para distinguir aqueles que integravam a família por consanguinidade daqueles que nela teriam entrado a partir do casamento, não estando relacionados com os gêneros masculino ou feminino, podendo ser utilizados tanto para homens quanto para mulheres.

Partindo desta consideração, é possível observar que a hierarquia presente na organização social dada a partir da utilização destes termos não se baseia nas relações de gênero. Aqueles denominados pelo termo oko, ocupavam uma posição superior em relação aos denominados como iyawo, pois os primeiros já eram membros da família por consanguinidade. As mulheres englobadas na categoria oko estavam em uma posição superior às mulheres iyawo. No entanto é importante considerar a fluidez existente nesses papeis sociais, pois novos membros sempre são incorporados à família, e por isso as posições sociais se encontram em constante mudança.

Ainda tratando-se da linguagem, a autora nos fornece o exemplo do termo oba, que significava governante, sendo uma posição social que poderia ser ocupada por um homem ou uma mulher. No entanto, após a colonização, o termo passou a ser usado para se referir a rei. Esse exemplo atesta a hipótese de Oyewumi de que as categorias de gênero são uma construção social e cultural da sociedade patriarcal que se desenvolve no Ocidente.

A despeito de algumas suposições problemáticas que relativiza a natureza da língua e linguagem, ao mostrar como estas novas categorias de gênero e mulher são construções modernas e dizem respeito a uma nova ordem de opressões sobre determinados setores das sociedades africanas, ela defende retornar o estudo das sociedades do passado pré-colonial para entender equidade e posterior construção de exclusão de gênero em tempos coloniais e pós-coloniais.

  • Repensando novos eixos epistêmicos: maternidade e matrifocalidade

Ao retornar este período pré-colonial ela busca entender como o princípio da maternidade (matrifocalidade) é central para entender as ordenações e relações sociais nas sociedades africanas (mais particularmente Oyó – Yorubá). Segundo ela “O princípio da maternidade informa o quadro ideológico da ordem e relações sociais a ponto de serem atribuídos poderes sagrados/míticos à condição da mulher enquanto educadora dos filhos, ou Ìkúle abiyamo (Oyewumi 1997:38).

A maternidade é definida por uma relação de progênie, e não pela relação sexual com um homem, constituindo a identidade principal assumida pela mulher. Desta forma, na perspectiva africana, uma mãe por definição não poderia ser solteira, pois nestas sociedades ser mulher não é sinônimo de ser esposa. A identidade mais importante assumida pelas mulheres nas sociedades africanas era a de ser mãe, sendo o princípio organizador do núcleo familiar a a consanguinidade e as relações de sangue e não o conjugalidade. O laço mais importante desses arranjos familiares está dentro do fluxo da família da mãe. Assim sendo, o parentesco é definido a partir de laços uterinos e dentro das relações sociais estabelecidas, acreditava-se que a mulher possuía poderes sagrados devido à maternidade.

Oweyumi atribui à questão da matrifocalidade, presente na maior parte dos sistemas familiares africanos, o fato da “mãe” ser o centro a partir do qual as relações familiares são delineadas. Em cada “família”, os membros seriam agrupados em unidades, que em yorubá recebiam a designação de omoya, formadas pela progenitora e pelas crianças que seriam irmãos a partir de laços uterinos. A ligação existente entre os membros desta unidade denominada omoya seria dada pelo amor incondicional daquela responsável por seu cuidado, a “mãe”. Um exemplo desta ligação se encontra no fato de que os primos maternos eram considerados mais próximos, enquanto irmãos uterinos, do que irmãos que tivessem o mesmo “pai”, porém não a mesma mãe.

Observa-se, desta forma, que as relações estabelecidas pelo omoya transcendiam o âmbito doméstico, detendo grande consideração na organização social e devendo ser privilegiadas e protegidas acima de outras. A categoria omoya transcendia o gênero e na cultura ocidental seria comparada à irmã na família nuclear. A relação estabelecida entre os irmãos de ventre na cultura yorubá era baseada em uma compreensão de interesses comuns, que nasciam de uma experiência compartilhada. Essa experiência que une os omoya em lealdade e amor é partilhada através do ventre materno.

Quando ela ressalta a ideia de matrifocalidade para a equidade de gênero, o que ela defende é que a exclusão das mulheres (da esfera econômica/pública/social) não é “inerentemente” humana, há uma historicidade por trás desta exclusão. O princípio da matrifocalidade transcende o determinismo biológico em suas implicações predominantes no pensamento ocidental para construção de identidades e ordenação social.

Palavras finais

As análises feitas por Oyèwúmi nos possibilitam pensar em como as categorias ocidentais relacionadas ao gênero e a uma determinada concepção de organização familiar não dão conta de compreender ou definir a organização social e cultural das sociedades africanas pré-coloniais (e mesmo pós coloniais). A dualidade entre masculino e feminino e os papeis sociais assumidos pelo homem e pela mulher, marcados por suas características biológicas, não são capazes de interpretar as culturas africanas sem que existam distorções.

Transcendendo o continente sua escrita provocativa deslocaliza nossos olhares sobre conceitos tão enraizados nas sociedades contemporâneas, como este “outro-corporificado”, colonial/colonizado, “a-histórico” e “biologicamente pré-estabelecido”: a mulher.

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Fernanda Chamarelli de Oliveira é professora dos anos iniciais no Município do Rio de Janeiro.

Washington Santos Nascimento é professor de história da África na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).