Cabo Verde: A fabulosa história de ‘Negrito Manuel’

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Gravura de Negrito Manuel

Nuno Rebocho, Por dentro da África

Os fatos relativos ao designado Negrito Manuel – também chamado “Manuel da Guiné” ou “Manuel da Costa dos Rios” – são um episódio da riquíssima história das ilhas de Cabo Verde e, para melhor o entender, é necessário enquadrá-lo no ambiente de misticismos de uma época em que dominava o escravagismo, então essencialmente praticado pelos reinóis ibéricos, e na qual os impérios ainda emergentes – como o da França, o da Inglaterra e o dos Países Baixos – já ameaçavam meter o dente.

Não se conhece com exatidão a história de Negrito Manuel. Há referências de que terá nascido em Cabo Verde, mas os mais seguros relatos apontam para que veio à luz em terras dos rios da Guiné (então chamada Costa dos Rios) nos inícios do século XVII, provavelmente em 1604. Certeza, certeza, só existe quanto à sua ladinização nas ilhas de Cabo Verde, na região hoje designada Ribeira Grande de Santiago. Teria então 23 anos.

Segundo se depreende da sua biografia, a ladinização terá sido apressada, como era a prática corrente. Os escravos chegavam aos magotes e, depois de desembarcados, ouviam umas apressadas prédicas em latim que sequer percebiam. Os escravos, mercadoria em trânsito, deveriam ser “despachados” o mais depressa possível para engordar a gula dos traficantes. Quanto menos tempo permanecessem em Ribeira Grande, menos aí consumiam (e já consumiam pouco). Portanto, maior seria o lucro.

A tanto se resumia a doutrinação religiosa feita pelos sacerdotes de Ribeira Grande. Terá recebido batismo na pia da Igreja de Nossa Senhora do Rosário, uma das que já então estavam aí levantadas (no pequeno espaço da, por essa época, opulenta cidade reinol da Ribeira Grande chegaram a existir 24 templos, uma Misericórdia com um hospital – com o significado que esta palavra então detinha1 -, um Paço Episcopal, um cabido, diversas irmandades, o que reponta a importância que a Igreja Católica teve nessa cidade).

Ribeira Grande era uma babel de mercadores negreiros, na maioria cristãos-novos à mistura com reinóis enviados pela Coroa metropolitana e “pardos”2 resultantes da crescente mestiçagem, e com os marinheiros despejados dos veleiros ancorados ao largo da baía. A cidade era uma mescla de múltiplos templos católicos com tabernas que bordejavam o bairro onde habitavam os dignitários: as chamadas Ruas Direita, da Banana ou Rua Carreira. Os escravos permaneciam em cubatas existentes nos quintais desses dignitários ou em mais isolados acampamentos chamados “tabankas”3.

Caçador animista, tal como os seus antepassados, Manuel fora apresado nos primeiros anos do século XVII e transportado em embarcação negreira para Cabo Verde, então o principal entreposto do tráfico de escravos. A sua ladinização ocorrera por altura da chegada dos três primeiros jesuítas ao arquipélago, quando nele existia vacatura no seu bispado em consequência de um longo litígio entre o bispo D. Pedro Brandão, a Coroa e os mercadores. Os jesuítas traziam o claro objetivo de moralizar um clero debochado pelo ambiente em que se desenvolvera. Tudo indica, porém, que a ladinização de Manuel não lhes foi confiada já que, desde a sua chegada, os jesuítas se opuseram à apressadíssima e superficial evangelização efetuada pelo clero ribeira-grandense, satisfazendo os interesses dos mercadores negreiros e ele mesmo envolvido no tráfico de escravos.

O nome cristão por que ficou conhecido ter-lhe-á sido atribuído em homenagem ao rei de Portugal há pouco falecido – D.Manuel I. Do seu verdadeiro nome, do que ele recebera na origem, não ficou qualquer vestígio nos documentos, dado que a escravização implicava perda de identidade, despersonalização, uma despromoção da qualidade de homem para a de peça, força braçal sem vontade própria.

Gravura de D.Manuel I – Portugal

Nessa qualidade, foi vendido como braço escravo em Ribeira Grande de Santiago (hoje também conhecida como Cidade Velha) para ir trabalhar nas plantações instaladas pelos portugueses no Brasil, na região de Pernambuco. Preso com argolas, foi transportado nos porões de um patacho (o “San Andrès”) com mais três dezenas de escravizados, assistindo à morte de alguns outros seus desventurados companheiros, como nesses tempos acontecia com regularidade.

Terá chegado ao Novo Continente em 1629 onde de novo foi vendido na praça pública ao capitão de um navio argentino, de nome Andrea Juan, homem, ao que se sabe, de origem portuguesa (a concentração das duas coroas ibéricas na mesma cabeça, estreitara os vínculos familiares e patronímicos dos dois países).

O tráfico de escravos era então assim feito: uma vez capturados na origem, os escravos eram transportados para o entreposto (no caso, Cabo Verde), aí ladinizados para nova exportação realizada pelos comerciantes intermediários. Chegados ao local de destino, eram outra vez leiloados4. O negócio negreiro mobilizava uma cadeia de intervenientes que lucravam neste circuito.

Andrea Juan era amigo de outro português, António de Faria e Sá de seu nome, fazendeiro em Santiago del Estero (no norte da Argentina) que nesta história teve protagonismo importante, embora incidental. É de o mencionar para o melhor entendimento dos fatos.

Comprado por um novo senhor, Manuel foi transferido para onde começava a despontar Santa Maria de Buenos Aires5.

IMAGENS QUE DERAM NOVO RUMO AO ESCRAVO MANUEL

Imagem de Imaculada Conceição

Faria e Sá pedira a Andrea Juan que lhe comprasse no Brasil umas imagens de barro da Imaculada Conceição com as quais queria prestar-lhe culto numa capela que estava a construir. Cuidadosamente encaixotadas em Pernambuco, as imagens foram encaminhadas para Buenos Aires na mesma embarcação em que seguia Negrito Manuel. O escravo ficou encarregado de vigiar a carga transportada.

Andrea Juan, agradado com o seu serviço, decidiu dar mais completa educação na doutrina católica do que o escravo recebera em Cabo Verde e também a primeira comunhão – o que terá acontecido por volta do Dia de Reis (6 de Janeiro).

Manuel fez-se assim servente do patacho em que fora embarcado. Quis o acaso que o encontro do escravo com as imagens fosse determinante para a sua vida futura. Ladino e perspicaz, rapidamente intuiu que elas o poderiam aligeirar da escravatura a que estava sujeito e soube aproveitar em seu benefício as situações que dela resultavam.

Em 21 de Março de 1631, o navio que transportava Manuel chegava a Buenos Aires, cidade que já se desenvolvia junto à foz do Rio de la Plata, na futura Argentina (nome da região onde se admitia que houvesse muita prata6). Andrea Juan viu-se envolvido em complicações de que se livrou graças à ajuda de um outro seu amigo, Bernabé Gonzàlez de Filiano. Em agradecimento, Juan ofertou-lhe o escravo Manuel. Desse modo, Negrito foi transferido para Luján, onde Filiano possuía uma fazenda chamada Rosendo. Luján era, por então, um pequeno aglomerado de casas dispersas pelo plaino ribeirinho.

Andrea Juan decidira levar ele próprio as imagens trazidas de Pernambuco para as entregar a Faria e Sá, aproveitando para se distanciar das trapalhadas havidas em Buenos Aires. Numa caravana de carroções, carregou a encomenda destinada ao norte da Argentina, passando por Luján, onde já se encontrava o escravo Manuel. Mas quando, no dia seguinte ao da sua chegada a Rosendo, Juan pretendia seguir viagem, os bois que puxavam os carroções não se conseguiram deslocar devido à sobrecarga que os atascara. Tentaram colocar mais bois a puxá-los e, por sugestão de Negrito, os caixotes que continham as imagens mudaram de carroção, o que se fez com bastante ligeireza que a todos espantou, dado que os caixotões pareciam leves, não explicando assim o enterramento das carroças. Quando se retirou um dos caixotes da carroça que a transportava, ela conseguiu avançar e começaram a ouvir-se gritos de “Milagre! Milagre!”.

Para Manuel era um sinal dos Céus, indicando que a imagem deveria ficar em Luján, enquanto a outra seguia para Sumampa, onde ainda hoje se encontra. Do que considerava um sinal de imediato alertou Juan. Decidiram então abrir o caixote, encontraram a imagem feita de argila cozida figurando MARIA: aparentemente não justificava o afundamento do carroção na lama. Parecia não ter o peso suficiente. Os carregadores impressionados com o que viam, com o fervor próprio da época veneraram e beijaram a imagem. Manuel nunca mais quis dela se libertar.

Igualmente impressionado com o que tinham por milagre, Filiano mandou construir um oratório para venerar as imagens. Começou a ser erguida em Rosendo uma ermida em adobe e cobertura de palha entre as gramíneas das pampas: nessa época assim eram construídas as capelas disseminadas pelos vastos territórios conquistados pelos europeus.

A fama do milagre rapidamente se espalhou pelas redondezas e, durante anos, passou a fazer-se peregrinação ao local. Com os cuidados de Manuel, a imagem mantinha-se iluminada com velas, gerando-se a fama de que nunca lhes faltava luz. Negrito foi crismado como “escravo da imagem” da designada Imaculada Conceição e todos como tal o referiam, o que o libertava de maus-tratos e de outros pesados trabalhos na estância.

Com o rodar dos tempos, a fazenda da Rosendo e a sua ermida caíram no abandono. Foram esquecidas as ocasionais procissões. Até que uma abastada senhora de Buenos Aires, Ana de Matos de seu nome, resolveu pedir aos herdeiros de Gonzàlez de Filiano (Diego Rosendo de Trigueros e Juan de Orama Filiano) para transferir aquela imagem para a capela que pretendia construir noutra estância também nas margens do rio Luján, um afluente de Rio de la Plata. Corria o ano de 1674.

Reza a lenda que, quando se quis proceder à transferência da estatueta de argila, no dia seguinte a ser arrancada do seu primitivo lugar, desapareceu para misteriosamente reaparecer na ermida de Rosendo. Duas vezes tentaram transportá-la para a propriedade de Ana de Matos e duas vezes a imagem misteriosamente regressou a Rosendo. Ana de Matos alertou as autoridades religiosas que se decidiram pelo transplante da imagem – agora com pompa e circunstância, ricamente revestida. Desta feita, os intentos concretizaram-se com sucesso.

Segundo alguns, a circunstância de Negrito Manuel ter acompanhado a trasladação, permitiu que ela se fizesse com êxito, despertando o facto algumas suspeitas sobre as verdadeiras razões por que teriam falhado as anteriores tentativas de colocação da imagem na ermida de Ana de Matos.

A partida de Manuel da fazenda de Rosendo criava, no entanto, um problema legal: ele era uma “peça” da propriedade dos donos da estância de Rosendo, estava indissoluvelmente ligado a essa fazenda e os seus proprietários reclamavam-no. Negrito Manuel bem invocava ser “escravo da Virgem” e que tal fora decidido por Andrea Juan, que o garantira à hora da morte. Para resolver a pendência, Ana da Matos decidiu comprar o escravo por cem pesos que, somados a outros 150 por ela doados para lhe serem entregues após o resgate, foram suficientes para que os proprietários de Rosendo aceitassem a desvinculação de Negrito.

Feita a escritura do trespasse em 1671 (vésperas da “festa da Puríssima Conceição”, portanto em Dezembro), com ela foi dada liberdade a Manuel sob condição de ficar com o cuidado da imagem. Desde essa data. Negrito zelou pelo altar de Luján e pela conservação das suas velas acesas, coadjuvando o pároco Pedro Montalbo (1648-1701), capelão da capela de Luján.

Fez-se fama que a imagem saía do seu nicho, voltando a nele aparecer na manhã seguinte, deixando pelo caminho um rasto de barro. A verdade é que, enquanto Manuel foi vivo, apenas ele e somente ele dela cuidava. Daqui nasceu a prática de aspergir com pós de barro os doentes que vinham pedir intercepção à Virgem de Luján.

A imagem recuperou a sua fama e para ela começaram a convergir os povos da região que a designaram de Nuestra Señora de Luján, de tal modo que em 1755 o lugar foi promovido a vila.

Até à sua morte, Negrito Manuel fez-se conselheiro de quantos procuravam a capela. Narra a lenda que, aquando do seu falecimento (em 1686), após 50 anos ao serviço da imagem da Señora, Negrito invocou a Virgem e pediu-lhe para que a sua morte ocorresse numa sexta-feira a fim de que, no sábado seguinte, “fosse levado à Glória”, como então se dizia. A sua petição afinal cumpriu-se: morreu numa sexta-feira, deixando de herança 15 mil pesos acumulados de esmolas deixadas pelos peregrinos à imagem por que zelara.

O seu corpo foi sepultado atrás do altar maior do Santuário que estava a ser construído em Luján.

Esta é a história de Negrito Manuel, um dos inúmeros escravos ladinizados em Ribeira Grande de Santiago e que o Santo Padre Francisco se prepara agora para beatificar. Tentei expurgá-la das lendas que em seu torno se criaram. É um personagem histórico quase desconhecido em Portugal e muitíssimo mal conhecido em Cabo Verde. Recordo que, apesar de ser também uma referência da atual Cidade Velha e um símbolo da mestiçagem da pretensa latinidade sul-americana (resultante do cruzamento de africanos escravizados, europeus e ameríndios), quando tentei recolher elementos sobre esta figura, deparei que o próprio pároco de Cidade Velha nunca dela ouvira falar. A tanto chega o desconhecimento que se prefere ter da História e das histórias de Cabo Verde

Nuno Rebocho, Por dentro da África

Notas

1 Hospital era uma espécie de albergue onde se acolhiam os que procuravam um tecto, seja as pessoas saudáveis que se encontravam em trânsito, seja os que adoeciam e necessitavam de um abrigo.

2 Pardos, assim se chamavam, no tempo referido, os mestiços.

3 Tabanka era o nome dado aos aldeamentos na Guiné.

4 Os mercados de escravos ficavam, por norma, situados nas proximidades dos lugares do seu desembarque. Assim aconteceu em Lagos, junto à sua alfândega, em Ribeira Grande de Santiago, nas proximidades da sua aduana, ou no Rio de Janeiro.

5 A cidade argentina deve o seu nome ao facto do seu fundador, Pedro de Mendoza, ser membro da Confraria dos Marinheiros de Triana, pelo que lhe chamou Real de Nuestra Señora Santa María del Buen Aire.

6 O rio recebeu este nome por nele os navegadores pensarem abundar este metal na região, enganados pelas moedas de prata que encontraram nas mãos dos habitantes… que as tinham obtido dos espanhóis que por ali tinham passado.

 CRONOLOGIA

1446 – chegada dos portugueses aos rios da Guiné

1460 – chegada dos portugueses a Cabo verde (Ribeira Grande de Santiago)

1494 – assinado Tratado de Tordesilhas

1500 – navegadores portugueses reconhecem Brasil

1501 – portugueses começam a explorar a região de Pernambuco

1516 – espanhóis chegam à região de Buenos Aires

1580 – D. António derrotado em Alcântara e unificação ibérica

1604 – data provável do nascimento de Negrito Manuel

1627 – aprisionamento e chegada de Negrito Manuel a Ribeira Grande (Cabo Verde)

1629 – chegada de Negrito Manuel a Pernambuco

1631 – chegada de Negrito Manuel a Buenos Aires

1686 – morte de Negrito Manuel

1755 – fundada a cidade de Luján

2013 – eleição do cardeal Bergoglio a Papa Francisco

2016 – aberto processo de beatificação de Negrito Manuel