Por dentro da História: A África repartida na Conferência de Berlim

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A caricature of Bismark at the 1884 Berlin Conference, often taken as the starting point of the Scramble for Africa.

Ademir Barros dos Santos, Por dentro da África

Em 1884, apenas poucos anos após a extinção do tráfico negreiro ocidental, os europeus quase nada conheciam do continente africano. Mas, continuando o processo que Leila Hernandez denomina, no capítulo 2 de seu ‘África na Sala de Aula’, “roedura do continente”, eles deram início ao que a mesma autora intitula “violência geográfica”. Reunidos em Berlim, resolveram dividir, entre si, todo o continente africano; evidentemente, sem que qualquer africano tenha sido, sequer, consultado. Eis os antecedentes:

. 1865: o duque de Brabante, feito rei Leopoldo I da Bélgica, interessa-se pela África, e convoca a Conferência Geográfica de Bruxelas;

. 1876: cria-se, na Conferência de Bruxelas, a Associação Internacional Africana – AIA; melindrado por não ter sido convidado para a Conferência, Portugal inicia expedições de conquista à África;

. 1879: Henry Morton Stanley inicia a exploração do Congo, em nome da AIA; cria-se o Estado Livre do Congo;

. 1880: Portugal anexa propriedades rurais independentes afro-por­tu­guesas, em Moçambique;

. 1882: em 13 de julho, os ingleses se instalam, proviso­riamente, no Egito; em 22 de novembro, o parlamento francês aprova tratado firmado com o rei bateke, Makoko, estabelecendo a soberania da França sobre a margem direita do território então denominado “Stanley Pool”;

catom africa1. 1884: em 24 de abril, o rei belga Leopoldo II, dono do Congo, oferece, à França, direito de preferência em caso de venda desse Estado;

. 1884, ainda: em julho, Gustav Nachtigal se apossa de povoados no Togo e em Camarões; em 15 de novembro, Bismarck convida delegados de quatorze nações para se reunirem em Berlim, dividindo, entre si, a soberania sobre territórios africanos;

. 1885, 26 de fevereiro: encerra-se a Conferência; a África está partida.

Diversas foram as formas de ocupação dos territórios partilhados; mas atingiram toda a África, especialmente pela aplicação do pacto denominado hinterland, que permitia a qualquer nação, ao expandir-se pelo continente, tomar posse de territórios ainda não reivindicados por outro europeu. Logo, toda a África estava colonizada, com exceção, apenas, de Libéria[2] e Etiópia, esta porque não se rendeu à tentativa de ocupação italiana.

Alguns efeitos da partilha

Etiópia

Ocupando grande parte do chamado Chifre da África, a Etiópia possuía documentação escrita, e sua história está registrada não só em suas próprias inscrições, mas, também, nas dos povos que, com ela, mantiveram contato; além disto, tem sua história fortemente vinculada à do reino de Axum que, durante quase um milênio dominou o tráfico no Mediterrâneo, embora apresente características próprias, que remontam aos tempos bíblicos.

Crê-se que a Etiópia, antiga Abissínia, foi o primeiro país africano a ser cristianizado: isto, ainda antes do tempo de Constantino. Há inscrições em grego que atestam a visita de Abratoeis, vice-rei etíope cristão, ao imperador romano, em 360 d.C., época em que o cristianismo mal havia se transformado em religião oficial de Roma, o que acontece, apenas, quarenta e sete anos antes.

Também a conversão do tesoureiro da Candace etíope, acontecida pelas mãos de Filipe ainda antes da conversão de Paulo, e narrada por Lucas em seu Atos dos Apóstolos, 8, 26-40, dá prova do que acima se afirma.

The conference of Berlin – Gravura: Afrikakonferenz

A história local ainda registra que, dez anos após a Partilha, a Itália buscava  obter colônias na África e, com este intuito, voltou-se contra a Etiópia. Visando dominar a cobiçada localização geográfica, declarou-lhe guerra em 1895 mas, um ano depois, foi vencida pelo exército de Menelik II, o que tornou a Etiópia a primeira nação africana a repelir europeus.

Em consequência, as notícias do Estado africano que, comandado por africanos, havia derrotado um exército europeu, espalharam-se rapidamente, tornando a Etiópia símbolo de resistência para toda a diáspora africana.

Trinta e cinco anos depois, em novembro de 1930, Ras Tafari Makkonen[3] foi coroado Hailé Selassié I, imperador que alegou descender da mais antiga monarquia continuada do mundo, ao traçar sua genealogia a partir da união do Rei Salomão com a Rainha de Sabá, citada em I Reis, 10:1-13.

Passados cinco anos e a Itália, já então fascista, novamente tenta conquistar a Etiópia: a invade, tentando “retaliar a humilhação” sofrida com a derrota da primeira investida. Hailé Salassié discursa sobre o tema na Liga das Nações, e acaba, por isto, sendo apontado como “Homem do Ano” pela revista “Time”. A ocupação dura de 1936 a 1941, quando  negros de todo o mundo acorrem em socorro da Etiópia; novamente a Itália vê-se repelida.

Kanem-Bornu

Esse império parece ter-se formado entre os séculos VIII e IX, ocupando o espaço entre o nordeste das dunas de Kanem e do atual Chade, no que foi a encruzilhada das rotas comerciais que vinham da Tunísia e Egito, para a chamada África Negra.

~kanemInicialmente, o Kanem era uma confederação de diversos grupos étnicos; mas, por volta de 1100 d.C., o povo kanuri chega à região e, no final do século XII, um príncipe deste povo, que se atribuiu o título de Maï e o nome de Doumana Dibbalemi, convertido ao islamismo, declarou a jihad[4]a seus vizinhos; ao vencê-los, consegue impor sua autoridade sobre os demais Estados da região, unificando-os no Império Kanem-Bornu.

Sob Idris Alaoma, que reinou de 1575-1610, o Kanem estendeu seu poder até Bornu, outro reino kanuri, localizado ao sul e oeste do lago Chade. Conseguiu este rei, ao impor o Estado Islâmico, tamanha expansão, que passa a controlar todo o extenso território compreendido entre Líbia, lago Chade e a região ao sul que, extremamente estratégica, controlava todo o tráfico comercial entre a África Branca e a África Negra, e que viria a ser chamada Hauçalândia.

Idris Alaoma visitava frequentemente o Oriente e a Turquia, onde obtinha instruções militares; dedicado à arte da guerra, multiplicou seu exército, subdividindo-o em unidades especializadas e aperfeiçando técnicas de paliçadas defensivas.

Seu exército passou a ser conhecido, especialmente, pelo poder e destreza da cavalaria. Em contrapartida à orientação bélica, foi ele, também, grande construtor de mesquitas.

O Império sobreviveu por séculos. Porém, em 1846, começou a perder poder em função do crescimento das cidades-estado hauçás e, em 1893, Rasbah, aventureiro vindo do Nilo, quebra a resistência do Kanem-Bornu, malgrado o grande preparo militar desse Império.

Quando Rasbah se preparava para dominar a região, os colonizadores europeus, acobertados pela Partilha da África, ocorrida oito anos antes, impedem tal domínio.

Um dos principais efeitos do Kanem-Bornu ter sido passagem de nômades em busca de pastagens ou comércio, foi possibilitar a mescla de populações da África Negra com os árabes, dando origem às populações fortemente mestiçadas que ocupam, atualmente, seu antigo território.

Civilização Iorubá

Segundo um dos principais mitos da criação, a civilização iorubá, localizada no sudoeste da atual Nigéria, tem origem no rei Odudwa, que desceu dos céus sobre o mar, tendo, nas mãos, uma cabaça cheia de areia e uma galinha; despejou a areia sobre o mar, posando, nela, a galinha que, ciscando, deu origem à terra habitada. Os iorubás seriam descendentes diretos de Odudwa, primeiro soberano deste povo.

Embodying The Sacred In Yoruba Art

Essa civilização que, segundo pesquisa arqueológica realizada em 1938, já utilizava a técnica metalúrgica da areia perdida no século XI, centrou-se em três cidades: Benin[5], Oyó e Ifé, sendo esta a cidade sagrada: era ali que estava localizado o centro da civilização, posto que lá estava seu berço, bem como o palácio do chefe religioso, o Oni.

As outras cidades, todas mitologicamente fundadas por filhos de Odudwa, tinham por chefe um Obá. Considerado sagrado, usava ele, como símbolo real, um turbante, do qual pendiam fios de pérolas que, de tão juntas, não deixavam ver seu rosto.

Os reinos iorubás, embora ligados cultural, linguística, religiosa e historicamente, organizavam-se de forma autônoma, o que pode ter facilitado sua destruição quando da invasão europeia; esta configuração, talvez, tenha impedido que os iorubás formassem um império.

O reino de Oyótornou-se, nos séculos XVII e XVIII, o mais poderoso dos reinos iorubás, graças à sua organização militar, que se apoiava em unidades de arqueiros montados, armados com lanças e espadas; mas Oyó decai no século XIX, sob os fulas; porém, nem estes, muçulmanos, nem os europeus, fortemente cristãos, conseguiram impor suas religiões aos iorubás, cujo panteão de orixás[6] ainda hoje tem lugar de destaque nas crenças locais, assim como em toda a diáspora africana das Américas.

A cidade de Benin,depois tornadareino por volta de 1300 d.C.,ligava-se, também, à cidade sagrada de Ifé – assimcomo todo o mundo iorubá – por descendência de Odudwa; seu soberano mais célebre foi o Obá Ewaré, o Grande: entronizado em 1440, mandou construir estradas e embelezou a capital que, dividida em quarteirões especializados por atividades, produzia a receita do rei, gerada pela cobrança de tributos sobre o comércio.

Na direção do Estado, o soberano contava com a assistência de aristocratas e do senado – Sociedade Ogboni – que, formado por anciãos, podia, inclusive, destituir o próprio rei.

Quando da Partilha da África, os ingleses tentaram impor seu protetorado ao reino do Benin; mas encontraram forte oposição do rei, o que resultou no assassinato do cônsul inglês. Em represália, a Inglaterra enviou expedição punitiva que, em 1897, tomou e pilhou totalmente a capital: os soldados ingleses apoderaram-se de milhares de obras-primas da arte beninense, que podem atualmente ser vistas em museus e galerias diversos da Europa.

Kongo[7]

O reino do Kongo, que remonta ao final do século XIV, ocupou o território que vai do norte do porto de Loango ao norte de Angola, e do Atlântico ao rio Cuango, cobrindo, além de parte da atual República Democrática do Congo, também Cabinda, e partes das atuais Angola e República do Congo.

Note-se que o português Diogo Cão, “descobridor” do Kongo para os europeus, quando lá chegou, em 1482, já encontrou o reino que, com quase um século de existência, estava colocado entre as civilizações mais prestigiosas da África Central: isto porque a estrutura político-social local já utilizava mercados regulares, sistemas de troca, e dispunha de calendário, não escrito, organizado em semanas de quatro dias.

Kingdom_Kongo_1711O sistema familiar, composto por consanguíneos contados a partir da mãe, por isso mesmo não deixava dúvidas quanto a parentescos; neste sistema, a mulher desempenhava papel importante, pois cada uma herdava o poder de sua mãe e, quando da substituição real, o rei eleito era sobrinho do anterior[8].

O rei, que tinha por título Manikongo, morava na capital, Mbanza Kongo, rebatizada como São Salvador, talvez com a intenção de agradar aos portugueses; hoje, com a alteração de fronteiras produzida pelos europeus colonizadores, esta cidade está situada em Angola, perto da margem do rio Congo.

A estrutura de poder – como, de resto, em quase todos os reinos costeiros africanos – era centralizada no rei; porém, contava com tal nível de aperfeiçoamento, que alguns autores ocidentais julgavam haver sido desenvolvida por portugueses; o que não resiste às evidências históricas.

A estrutura da sociedade assentava-se nas aldeias, cujo núcleo era formado pelos membros do clã, contados pela linha matriarcal, como já se viu. Estas aldeias compunham distritos, dirigidos por funcionários nomeados pelo rei ou pelo governador de província, sendo que este podia ser transferido, também pelo rei, em acordo à sua vontade; os governadores cumpriam, ainda, as funções de conselheiros do monarca.

A estrutura militar era simples: o rei dispunha de guarda permanente, formada, principalmente, por soldados estrangeiros e escravos. Não havia exército formal e, em caso de guerra, cada funcionário territorial pedia a cessão de soldados aos chefes de aldeia, que os recrutavam e forneciam ao governo central.

A Fazenda era alimentada por impostos e pelo trabalho forçado; o tributo era pago em mercadorias, tais como tecidos e marfim, ou pela cessão de escravos; havia taxas alfandegárias, multas e similares; a moeda corrente era o cauri, ou búzio, espécie de concha marinha coletada em Loanda, ilha pertencente ao rei.

À chegada dos portugueses, o trono era ocupado pelo Manikongo Nzinga Kuvu que, depois de estabelecer contato com D. Manuel I, rei de Portugal, pediu-lhe, através de embaixador a ele enviado, técnicos, missionários, carpinteiros e pedreiros; o embaixador levou consigo, a Portugal, alguns jovens da corte, que o rei decidiu confiar à educação portuguesa.

À volta de sua segunda viagem a Lisboa, em 1491, o embaixador trouxe consigo missionários, exploradores e artesãos, que construíram, no Kongo, a primeira igreja, onde foram batizados, além do próprio Manikongo, que adotou o nome de João I, seus familiares e a maioria da nobreza.

Após a morte de João I, ocorrida em 1506, ocupou o trono seu filho, Afonso I. Logo após a posse, empreendeu ele todos os esforços necessários para a conversão da nação inteira, e escreveu ao rei português, solicitando o envio de mais técnicos e missionários.

D. Manuel, atendendo ao pedido do Manikongo, de fato lhe enviou missionários, embaixadores, técnicos e artesãos; mas, em contrapartida, impôs a presença de portugueses na região e a livre circulação de padres e administradores, além de pagamentos em cobre e marfim, possivelmente também em escravos, como compensação das despesas ocasionadas pela missão e pela educação dos filhos da nobreza local.

Como efeito, o plano de aculturação malogrou, já que a ajuda portuguesa estava condicionada à exploração econômica do Kongo, exigindo monopólios comerciais e instituindo jurisdições especiais, além de limitar o poder do rei.

A penetração portuguesa, a invasão holandesa em Angola e a consequente guerra entre estes e os portugueses, bem como intrigas entre facções internas e a posterior Partilha da África, desembocaram na perda da autonomia do reino e da soberania local.

Bibliografia e leitura recomendada

Costa e Silva, Alberto. A África explicada aos meus filhos. Rio de Janeiro: Agir, 2008.

Bíblia.Português. Bíblia sagrada.Tradução dos originais, dos monges de Maredsous. 116. ed. São Paulo: Ave-Maria, 1998.

Hernandez, Leila Leite. África na sala de aula.São Paulo: Selo Negro, 2008.

Hochschild, Adam. O fantasma do rei Leopoldo. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.

Santos, Ademir Barros dos. África – nossa história, nossa gente. Itu: Mirarte, 2015.

Souza, Marina de Mello e. África e Brasil africano. São Paulo: Ática, 2007.

[1] Texto reescrito com base na Parte 1 do livro África – nossa história, nossa gente, deste autor.

[2] Antiga colônia dos EUA, criada, em 1821, durante o governo do presidente Monroe, em Serra Leoa, para receber ex-escravos americanos retornados à África. Havendo proclamado a independência em 1847, tornou-se república, não sendo objeto de discussão na Conferência de Berlim.

[3] Ou seja: soberano do clã Taffari.

[4] Em tradução literal, submissão integral a Allah, que impõe o zelo por tudo o que pertence a Deus, o que inclui tudo o que há no mundo; assim sendo, o mundo inteiro deve submeter-se ao islamismo, posto que pertence a Allah; é o que justifica, no extremo, a guerra santa, aspecto que a palavra jihad adquiriu, erradamente, para os não islâmicos, como seu único intuito e significado.

[5] Reino iorubá, que não deve ser confundido com o Benin atual, antigo Daomé.

[6] Aqui, em idioma nagô, significando, em tradução solta, senhor da cabeça, ou seja: ori=cabeça, mais = possuidor, senhor, habitante.

[7] Conforme ensina Bruno Pastre Máximo em e-mail de 01 maio.2014 enviado a este autor, quando a referência é ao reino histórico do Kongo, grafa-se com K, diferenciando-o do atual Congo, então grafado com C.

[8] Ainda segundo Pastre Máximo, “Havia uma eleição entre os sobrinhos, e mesmo entre primos, já que, por ser matrilinear a descendência, podia ir para qualquer um dos lados da avó, ou mesmo para ascendência feminina anterior”.