Liceu Vieira Dias e o N’gola Ritmos: música e resistência anticolonial em Angola

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ngola2Por Washington Santos Nascimento, Por dentro da África

As informações sobre o local de nascimento de Carlos do Aniceto Vieira Dias (Liceu) ainda são desencontradas. Diz o imaginário angolano que ele teria nascido em 01 de maio de 1919 em Luanda, entretanto, consta em sua certidão de nascimento que ele nasceu em Banana, atual República do Congo (ex-Congo Brazzaville), quando seu pai José Vieira Dias estava na fronteira de Angola com o Congo.

O cineasta Jorge Antônio, que fez um documentário sobre Liceu, diz que, apesar do registro de nascimento informar que ele teria nascido em Banana, na verdade, ele nascera mesmo em Luanda. Segundo Antônio, “O pai achava que poderia haver problemas mais tarde com os portugueses e que o Congo ia ser independente mais cedo porque os belgas eram tão cruéis que o povo se ia revoltar mais depressa”.

Outra razão que nos leva a acreditar que ele teria nascido em Luanda é o seu apelido, pois havia o hábito local de renomear a criança em decorrência de algum fato relevante que tivesse acontecido próximo da data do nascimento da mesma. Alguns dias antes, em 19 de fevereiro de 1919, o Liceu de Luanda, futuro Salvador Correia e Benevides (nome que só teria a partir de 1924) fora inaugurado.

Liceu foi descendente de uma elite letrada nativa que teve certa ascensão econômica e social entre os séculos XVIII e XIX, os crioulos. Em Luanda, na primeira metade do século XX, este grupo era composto pelas famílias Vieira Dias, Mingas, Van-Dunem, Pinto de Andrade, Figueiras da Silva, Torres e Neto. Essa parcela da população, na ocasião, se encontrava em um claro declínio de seu prestígio econômico e social, sofrendo a concorrência dos portugueses que chegavam em um maior fluxo e com as mudanças no Estatuto do Indigenato (1926) tendo que se submeter a uma série de burocracias para ter o seu estatuto de “civilizado” reconhecido novamente.

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Fonte: SANTOS, Jacques Arlindo dos. ABC do BE Ó. Chá de Caxinde, Luanda, 1999.

Os Vieira Dias provavelmente tiveram sua origem no norte angolano e na atual República Democrática do Congo, em uma zona bakongo, visto as fronteiras serem mais fruto do domínio colonial do que natural. Ao longo dos anos, eles migraram para Luanda e se misturam com outros grupos crioulos existentes na localidade (no século XIX, por exemplo, Mateus Vieira Dias se casou com Margarida Van-Dunem dos Santos Torres) e construíram formas de resistências a perda de prestígio e autonomia imposta pelo colonizador, a exemplo da Liga Nacional Africana (LNA), criada na década de trinta e que contou com a família Vieira Dias, como Fernando Torres Vieira Dias, Mateus Vieira Dias e José Vieira Dias, pai de Liceu. Na LNA, Liceu e o N’gola se apresentaram algumas vezes.

Mario Pinto de Andrade, um dos mais importantes nomes da luta anticolonial, considerava o pai de Liceu, como seu tio por laços de afinidade e por um parentesco distante, o descreveu como sendo “[…] um homem de grandes bigodes, trazendo um grande chapéu, um homem respeitável”. Liceu casou-se em 1949 com Maria Natércia de Almeida Vieira Dias, uma mulher branca, provavelmente descendente de portugueses, e teve quatro filhos, Carlitos, Luzia Zizi, Ferdinando Vieira Dias (Xinito) e Felipe de Nery Vieira Dias (Pino).

Natércia nasceu em 01 de outubro de 1926 em Camacupa (Bié) e morreu em 2 de agosto de 2014. Em entrevista dada à Silvia Milonga (2014), Xinito disse que pelo fato da mãe ser branca, durante o tempo que Liceu fico preso (no chamado “Processo dos cinquenta”), a Polícia Internacional e de Defesa do Estado – PIDE “[…] não lhe fazia uma vistoria tão apertada, o que lhe permitiu funcionar ao longo desses anos como “pombo correio”, fazendo introduzir nas cadeias alguns bilhetes misturados na alimentação”.

Segundo Dionísio Rocha, a iniciação musical de Liceu teria ocorrido na escola da família Assis, que como dissemos anteriormente, era uma importante família crioula. Nesta escola, ele aprendeu violão e piano. Apesar de ter se tornado um músico de renome, foi no Banco de Angola onde esteve até o ano de 1959 quando foi preso. Três anos depois a instituição lhe enviou uma carta dizendo que, por conta de suas faltas, seria instaurado um processo disciplinar, que resultou em sua demissão. Além de músico e empregado de banco, Liceu foi também um esportista, tendo atuado tanto no atletismo, quanto no futebol do Clube Atlético de Luanda.

Ao acompanhar seus pais, ainda na juventude, em missões pelo interior do país, teve contato com as sonoridades dos instrumentos tradicionais, como o Xinguvo, Cacoxi, Hungo, Mariamba, Kissanje e Tambores, traduzindo-as para os sons do violão. Essas pesquisas musicais influenciaram fortemente a sonoridade que o N’gola iria atingir mais tarde.

A origem do N’gola Ritmos

Diferentes autores e memorialistas registram que o N’gola foi criado em finais dos anos quarenta, mais propriamente em 1947, na casa de Manuel dos Passos no Bairro Operário em Luanda, por Carlos Aniceto Vieira Dias, o “Liceu”, Nino Ndongo e Domingos Van-Dunen. Apesar da precisão desta informação, é muito difícil saber de maneira exata o momento efetivo de criação de qualquer grupo musical, pois quase sempre eles são formados por experiências anteriores, idas e vindas de músicos, ensaios… Assim sendo, o N’gola foi derivado de experiências anteriores de Liceu como a orquestra “Ritmo Tropical” e o “Grupo dos Sambas” e dos encontros fortuitos deste grupo de amigos.

Neste sentido, vale destacar a importância de Nino Ndongo para a materialização do grupo. Segundo Liceu, teria sido a música brasileira que os levou a descobrir a cultura e valor do angolano. A primeira formação do N’gola, contou, além de Liceu, com Domingos Van-Dúnem, Francisco Machado e Nino Mário Araújo (Nino Ndongo), pessoas com alguma ascensão social (“assimilados”) que originalmente se encontravam aos finais de semana para tocar e cantar.

Logo depois, por volta de 1951, iria se somar ao grupo Euclides Fontes Pereira, o Fontinhas. Depois disso, alguns saíram (Liceu, por exemplo foi preso) e outros incorporados – como Amadeu Amorim (preso também logo depois do ingresso no grupo), António Van-Dúnem, Zé Maria dos Santos, Zé Cordeiro, Gégé, Xodó, além da colaboração esporádica de artistas como Lourdes Ván Dúnen, Sara Chaves, Fernanda Ferreirinha e Belita Palma.

A musicalidade do N’gola Ritmos revela uma série de “desordens”, “dissidências” e desvios às normas, gerando por essa razão práticas culturais eivadas por misturas e mestiçagem. Marissa Moorman lembra que elas eram cantadas em diferentes línguas: kimbundo, kikongo, umbundu e português, além de frases e expressões em francês, inglês e espanhol. Dessa forma, “[…] as divisões instituídas pela regra colonial entre o tradicional e o moderno, o rural e o urbano, o branco e o negro, o musseque e a baixa, eram tocadas, desconstruídas e re-organizadas”. Revela-se assim uma complexa bricolagem com os membros do grupo agregarando práticas e formas culturais de origens diversas.

A atuação política do N’gola Ritmos

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Fonte: CORREIA, Fernando. Américo Boavida: tempo e memória (1923-1968). Luanda, Instituto Nacional do Livro e do Disco. Luanda, 2008, p.88

A própria existência do N’gola e a forma como ele deu visibilidade à cultura nativa angolana já foi uma forma de resistência ao colonialismo português, ao trazer para a cena uma produção local e assim se contrapor a ideia de que os angolanos eram “bárbaros”, “selvagens” e que nada produziam.

O fato do N’gola ter transitado por diversos lugares do país e mesmo fora, tendo contato de pessoas de diferentes origens, localidades e etnias permitiram a seus membros uma visão mais ampla e diversa da situação colonial bem como redes de organização e resistência ao colonialismo português.

O prestígio musical que assumiram e a informação de que eles iriam tocar em algum lugar também foi utilizado para arregimentar pessoas em pequenos “piqueniques”, “comícios” e “reuniões de esclarecimentos” sobre a opressão colonial visando politizar as populações locais. Estes eram realizados em localidades como Vila da Funda e no musseque Sambizanga ou mesmo na província do Bengo, muitas vezes se fazendo acompanhar pelo grupo Gesto.

Considerações Finais

É difícil separar o que é mito e o que não é nas memórias relativas à Liceu. Filmes, obras literárias, produções e discursos mais recentes presentes em sites e blogs de Angola constroem e reiteram este caráter mítico e “lendário” do mesmo. Trata-se de um personagem “quase legendário”, usando as palavras de Alfredo Margarido (1980), e um herói para a nação angolana, no mesmo patamar (ou até mais) do que seu amigo Américo Boavida.

Mesmo com esta ressalva que fazemos as representações e memórias construídas sobre Liceu, a sua história, bem como a do grupo que ajudou a fundar é importante para entendermos aspectos da realidade sócio-política de Angola antes de 1961 e mais propriamente as diferentes formas de resistências no campo da luta cultural.

Por fim, é importante destacar que tanto Liceu, quanto o N’gola, não podem ser vistos apenas na perspectiva da resistência cultural e política. Eles fizeram música, e muito boa música, que ressoa, é reinterpretada e ressignificada ainda nos dias atuais pelas ruas, becos e vielas de Luanda.

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  • Washington é professor de História da África na Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ

1 COMMENT

  1. (para o Aniceto Vieira Dias e “Liceu” de “N’Gola Ritmos”)

    Quando eu morrer
    eu quero que o N’Gola Ritmos
    vá tocar no meu enterro.

    Como Sidney Bechet
    como Armstrong
    eu gostarei de saber

    que vocês
    tocaram no meu enterro.

    Lá no céu também há “angelitos negros”
    e eu gostarei de saber
    que vocês
    me tocaram no enterro.

    Se não puder ser
    deixem lá
    tocarão noutro lado qualquer
    com lágrimas nos olhos
    como naquela noite
    em casa do Araújo
    lembrarão o companheiro
    das noites de Luanda
    das noites de boémia
    das tardes de moamba.

    Ah! Quando eu morrer
    já sabem
    quero que o meu caixão
    vá no maxibombo da linha do Cemitério
    quero que toquem
    a Cidralha
    ou convidem a marcha dos Invejados.

    É assim que eu quero ir
    acompanhado da vossa alegria
    bebedeiras seguindo o enterro
    as velhas carpideiras de panos escuros
    quero um kombaritókué dos antigos
    que vai ser muito falado.

    Não convidem mulatas
    que sempre estragam tudo
    Se vierem
    não lhes vou rejeitar.
    Cantem apenas
    alguns dos meus poemas
    até enrouquecer.

    Ah! quando eu morrer
    eu quero o N´Gola Ritmos
    tocando no meu enterro.

    Ernesto Lara Filho (1932–1977), poeta e jornalista angolano

    TENTATIVA DE GLOSSÁRIO

    Moamba — prato típico da culinária angolana, habitualmente de galinha
    Maxibombo — autocarro; ônibus
    Cidralha — nome de uma música tradicional do carnaval de Luanda
    Marcha dos Invejados — nome de um grupo carnavalesco de Luanda
    Kombaritókuè — (literalmente, “varrer as cinzas”) tradição luandense que marca o fim do período de choro de um morto após o seu enterro, equivalente à missa do sétimo dia na tradição católica; funeral