Angola: “O que será o kalupetekismo?”, por João N’gola Trindade

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Foto: Estrada para Huambo – Wikipedia

Por João N’gola Trindade, Por dentro da África 

O texto faz referência ao massacre na província de Huambo, no centro de Angola. O governo da região declarou que nove policiais e 13 civis foram mortos em um confronto, quando a polícia tentou prender José Kalupeteka, líder da seita religiosa “Luz do Mundo”, no dia 16 de abril. Moradores da região e a União Nacional para a Independência Total de Angola (UNITA) falam em até 1.000 mortos.

Luanda, Angola – Começo a nossa dissertação com uma pergunta: o que será o kalupetekismo? Essa pergunta surge na sequência dos acontecimentos que ocorreram recentemente na Província do Huambo. E em nossa modesta opinião, exige uma reflexão em torno de outra questão: o que dizer do indivíduo que, sem instrução, afirma ter encontrado na religião resposta para todos os problemas?

Importa referir que a complexidade do fenômeno em causa requer um estudo inter e multidisciplinar, e, apesar de não sermos experts em matéria de religião, pretendemos apenas refletir sobre a questão colocada com o propósito de identificar algumas das causas que terão motivado o surgimento do kalupetekismo.

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O conceito de kalupetekismo

Não nos parece ser fácil definir o kalupetekismo. Ora, fala-se em Igreja Luz do Mundo, ora em seita religiosa, havendo ainda quem fale de movimento fundamentalista cristão. Ao que me parece, as definições não param por aí, porém, limitamo-nos às duas últimas por serem as mais conhecidas.

Pelo que sabemos, no contexto cristão, a seita é um grupo religioso e igualmente uma corrente de pensamento que, no seio de uma Igreja, representa uma ruptura. Apesar de este termo ser pejorativo, a prática nos mostra que a ruptura registrada no seio de uma Igreja pode resultar no surgimento de uma “nova Igreja”. Pois, tanto a seita quanto a Igreja resultam de cisões registradas numa determinada Igreja.

De fato, a história da Igreja assim o diz, e sobre este assunto o diácono Carlos Macongo (evangélico-pentecostal) afirma o seguinte: “enquanto a Igreja Católica cresce na unidade, as Igrejas Evangélicas e Pentecostais expandem-se por meio das divisões”. A liberdade de pensamento de que resulta o pluralismo de interpretação da Bíblia parece motivar o surgimento tanto de uma quanto de outra.

Certificar-se de que este ou aquele grupo constitui uma Igreja, ou uma seita, não é tarefa fácil; requer conhecimento da doutrina professada por um grupo de indivíduos, e das suas práticas que devem conformar-se com a palavra de Deus.

Veja também: Proliferação de seitas religiosas em Angola 

Entretanto, se determinadas práticas (como o retiro para a mata; o abandono da escola, entre outras) atentam ou não contra a ordem instituída, é uma questão de perspectiva que, em nossa humilde opinião, torna o assunto mais complexo. Todavia, o próprio Cristo advertiu aos seus discípulos que somente “pelos seus frutos os conhecereis”. Ou seja, somente conhecendo a conduta de certo indivíduo é possível identificar o verdadeiro “cristão” – termo atribuído pelos pagãos aos discípulos que os viam como seguidores de Cristo (Atos 11: 22-29).

Com base em alguns dados publicados, relativos à biografia de Julino Kalupeteka, definimos o kalupetekismo como um movimento religioso saído da Igreja Adventista do Sétimo Dia. Esta confissão religiosa fundamenta a sua doutrina no Advento de Cristo e, alguns estudos feitos até o presente (cf. Os Jovens perguntam; Seitas e Heresias), apontam a datação do regresso de Cristo como um dos elementos da sua doutrina durante os primeiros anos da sua existência.

Conforme já o dissemos, os desvios de interpretação constituem um dos motivos do surgimento das seitas religiosas, oriundas de Igrejas (tradicionais) que, por sua vez, não sugiram do nada, isto é, como um “grupo original”. Portanto, se, por um lado, os dados apontam para o enquadramento do kalupetekismo no conceito de seita religiosa, por outro, a datação do regresso de Cristo insere-se no retorno à uma espécie de «pureza doutrinária» – uma das características de um movimento fundamentalista.

A mensagem de kalupeteka

Para alguns líderes espirituais, sobretudo pentecostais, “Deus não escolhe letrados para o ministério pastoral”. Para esses pregadores, ser “letrado” equivale a ser “arrogante”, daí que, segundo esta corrente de pensamento, “Deus escolhe o humilde” para o ministério pastoral. Infelizmente, o analfabetismo confunde-se aqui com humildade.

É possível que, do ponto de vista político, a mensagem de Kalupeteka descredibilize o programa de massificação do ensino inserido na política social do Estado Angolano sustentado pelo MPLA, que deseja, no próximo pleito eleitoral ,apresentar ao eleitorado a obra produzida durante o seu mandato. Isto é, uma estatística sobre o número de cidadãos inseridos no sistema de ensino.

Nesse sentido, a mensagem de Kalupeteka é vista, politicamente, como “subversiva” e “um atentado” ao programa de desenvolvimento humano que passa, entre outros, pela elevação do nível de instrução dos cidadãos. Não nos esqueçamos de que a consciência religiosa antecede a consciência política e jurídica, e que a força mobilizadora de um líder religioso reside no fato de, enquanto “representante” de Deus na terra, apresentar-se como autoridade inquestionável. Daí a capacidade de mobilização para as matas de de 3000 fiéis/cidadãos – um número de eleitores cujos votos interessam a toda formação política durante as próximas eleições. Isto por um lado…

Por outro, a mensagem parece revelar o baixo nível de instrução do pregador que, juntamente com o rebanho, aguardava num local inóspito o regresso de Jesus. Uma análise mais profunda sobre a sua mensagem parece revelar algum temor, ou insegurança de Julino Kalupeteka em relação à alguns membros letrados que ele teria acolhido em sua confissão religiosa. Por quê?

Como se sabe, a instrução habilita o indivíduo a exercer o poder da crítica sobre a realidade sociocultural, a condução do rebanho… A instrução cria mentes reflexivas consideradas de “insubmissas e rebeldes” por certos «profetas». Estes, com o temor pela perda do poder e do excessivo protagonismo exercido sobre o rebanho, desvalorizam a ciência e sobrevalorizam o conhecimento religioso, muitas vezes, distorcido.

Senão, como compreender que um indvíduo, ou seja, um crente qualificado de “kapanga” por um suposto «profeta» se sinta acomodado com tal adjetivo? Atenção que o sentido da palavra evolui no tempo e no espaço, e somente a sua contextualização permite-nos compreender o significado que ela apresenta num determinado momento.

Pois, se por um lado o “servo do Senhor” transmite a ideia de alguém que serve à Deus, portanto, uma posição de prestígio no seio da Igreja – povo de Deus -, do outro lado, o “kapanga” é apenas um serviçal e, nesta condição, não tem direito à palavra, senão mesmo satisfazer a vontade, neste caso, do líder carismático, incontestado.

Somente a permanência no obscurantismo, e, consequntemente a falta de intepretação correta da mensagem bíblica (de amor, e respeito), acrescida da aceitação de certos dogmas podem justificar a passividade do rebanho, em geral, e da ovelha em particular, diante de tamanho desrespeito representado pelo uso desta palavra!

Um Jesus iletrado?

Como teria sido possível um menino (Jesus) com apenas 12 anos de idade ter despertado a admiração dos doutores da Lei se não tivesse estudo? (Lc. 2:41-52). Para os cristãos, a afirmação segundo a qual Jesus Cristo teria sido analfabeto, embora tenha sido “o profeta-mor”, representa por si só um ato de distorção e de profanação do Evangelho. Por outro lado, estabelecer à força uma convergência entre o que teria sido a condição social de Cristo com a de Kalupeteka, parece ter sido o motivo da distorção da mensagem bíblica sobre a questão em análise.

Se assim for, diremos que tal objetivo – o de estabelecer um paralelismo entre Jesus e Kalupeteka – está longe de ser alcançado, pois, apesar da Sua origem divina, humanamente Jesus pertencia à linhagem do rei Davi, portanto, detentora de um elevado nível de instrução – elemento importante para exercer o poder e influência em Israel (ver o caso de Salomão, filho de Davi, no livro II de Cronicas, cap. 2).

Concluindo

Sem pretensão de concluirmos a abordagem do fenômeno em causa, diremos apenas que a história do kalupetekismo confunde-se com a trajetória de vida do seu líder interligada, durante algum tempo, com a Igreja Adventista do Sétimo Dia. O estudo da doutrina professada por esta confissão religiosa nos primeiros tempos da sua existência constitui um elemento importante para compreensão do kalupetekismo. Deste modo, esperamos que outras reflexões sobre o assunto em referência sejam trazidas à este espaço com o propósito de enriquecer o debate sobre um assunto que diz respeito à todos os cidadãos angolanos.