África em Conto: ‘Pikena e as conchas gritantes’

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Praia das Conchas em São Tomé – Foto de Lauro Cardoso

*Lauro Cardoso, Por dentro da África

Ao longe, lá na linha do horizonte, tem uma canoa que leve se aproxima. A
Pikena olha com curiosidade, enquanto permanece na boca da praia, brincando na areia
e jogando os pequenos grãozinhos ao mar. Só pode ser a mama que foi pescar desde
manhã cedo, antes da Pikena acordar!

A mama deve estar com muito peixe na canoa porque costuma trazer um monte para o almoço que o papa vai cozinhar. E hoje é dia de festa! Dia de comemoração das Conchas Gritantes, que é hábito aqui em casa.

A mama desceu da canoa, assim que ela beijou a praia, pegou Pikena no colo com o braço direito e no outro estava com uma bacia repleta de peixes, colocada em cima da sua cabeça.

No colo, Pikena observa as pegadas dos pés calejados e descalços da sua mãe e como ela a admirava devido à força, disposição e garra. Ontem de noite, antes de dormir, ela lhe contou uma estória muito bonita, chamada ‘A carapinha da Pikena’, inspirada na sua própria filhinha. Pikena adormeceu antes que a estória chegasse ao fim.

Na porta de casa, o papa se encontrava com o sorriso nos lábios, animado como
sempre, e ao pegar a bacia que estava por cima da cabeça da mama, ele indicou para
elas, um balde que estava no cantinho da cozinha, cheio de conchas gritantes.

Pikena desceu do colo da mãe e correu para ir ver mais de perto. Sim, eram conchas gritantes das mais lindas que vira nos seus pouquíssimos tempos de vida. Pikena perguntou para o pai quando é que iriam observar e ouvir as conchas a gritar. O papa respondeu que seria logo à tarde, assim que o Sol tivesse à beira de morrer para nascer noutro lugar.

A companheira e o filho de Lauro Cardoso – Arquivo Pessoal

Logo em seguida o papa foi preparar o almoço. Então, Pikena voltou para o colo da mama e as duas saíram de novo, caminharam um pouco pela areia com os seus grãos pequenos e universais, só que, dessa vez, entraram no mato, que começou com as mais pequenas
plantas. No decorrer do caminho, foram aparecendo árvores bem enormes e antigas. Perto de uma que a mãe deu o nome de ‘Ave’ existe uma pequena lagoa, onde tem alguns peixinhos que brilham.

Lado a lado, mãe e filha entraram na lagoa e sentaram juntas, com a água tapando seus joelhos, enquanto os peixinhos brilhantes acariciavam seus pés. Justamente naquele momento o tempo parou, tudo ficou mais lento. Pikena estava prestes a ouvir uma notícia que a deixaria muito feliz.

Quando o tempo voltou ao normal, a mama disse que dentro da sua barriga tinha alguém. Esse alguém era um menino, um menino que seria seu irmão e que teria a pele preta como a dela, a da mama e do papa. O sorriso saiu solto, pleno e resplandecente. Pikena passou a ter um irmão a partir dali.

Ao saírem da lagoa, a árvore ‘Ave’ lhes mandou um conjunto de flores e folhas para
levarem para casa como presente por elas terem feito companhia a ela, à lagoa e aos
peixinhos brilhantes.

Uma vez dentro de casa, com a comida feita pelo papa já prontíssima, Pikena felicíssima da vida, comeu tanto até sua barriga ficar redondinha. Depois, quando a tardinha se aproximava a passos largos, a família foi até a beira da praia com o balde de conchas gritantes.

Assim que o papa as jogou no mar, elas começaram a gritar sem parar, eram gritos belos e cantarolados, inexplicáveis através da escrita. Só quem estava lá poderia descrever essa sensação. Dizem que o grito dessas conchas se ouvia em toda ilha.

Pikena sentia tudo com felicidade, sorrindo em sintonia com a mama e o papa. Inclusive eu que estava na barriga da mama, já sentia o barulho musical dessas conchas gritantes.

*Nascido em São Tomé e Príncipe, Lauro José Cardoso é bacharel em Humanidades e licenciado em História pela UNILAB. Atualmente, realiza mestrado em Arqueologia e Patrimônio Cultural na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia.