África em Conto: “Mininus lutadur”, por Bernardo Intipe

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Foto de Virgínia Maria Yunes – Guiné-Bissau

Bernado Intipe, Por dentro da África 

Bissau – Era uma manhã, cedinho, Kit ton foi acordado por sua mãe, Nramba. A chuva caía e fazia frio. Mesmo assim, ele teve que levantar pra cumprir seu dever junto de seu irmão Besna. Às vezes, eles faziam corrida, antecipando a nascença do sol pra que seus suores não transbordassem como riacho de água salgada – se fosse a estação seca (verão). Porém, no período chuvoso, seus corpos ficavam tremendo debaixo de chuva como se tivessem sido jogados no fundo de um rio gelado.

Sempre foi hábito acordarem tão cedo à procura de ajudar a mãe nos trabalhos necessários pro sustento da família e a criação dos animais domésticos. Iam eles à procura da comida dos porcos, que doravante serviriam de comida pra família, mas nem sabiam se a encontrariam. Travessavam bairro por bairro – Pefine, Sintra e Amedalai –, debaixo de chuva, à busca da dita comida. Sempre havia a determinação de que encontrariam o que procuravam. Nunca deixavam de procurar, de segunda a domingo.

Porém, o que pairava nas suas mentes era “A nossa mãe é tão chata, que nem deixa a gente dormir. Até parece que não gosta de nós” ou “Alguns dos nossos colegas não fazem o que fazemos (buscar comida pros porcos). Nós todos os dias fazemos a mesma coisa”. Suas ideias a respeito da mãe eram fúteis, porque não sabiam que tudo o quanto fizessem era a construção de um futuro melhor. O que faziam era anormal pra idade, porque a maioria de seus colegas passavam o tempo nas brincadeiras e eles não.

Besna era o mais calmo e não reclamava tanto, mas gostava de balbuciar quando a mãe lhe pedia pra fazer algo. Kit ton era mais fervoroso e pensativo. Seria uma grande festa se a mãe lhes dissesse “Deixem de ir procurar hoje”. Seria como se a paz retirada deles fosse tornada. Mas também seria um dia banal, porque fariam o que não tiveram oportunidade de fazer até hoje, nas manhãs, com seus colegas. Mal conheciam o bairro. Mesmo assim, perguntavam nas casas dos desconhecidos se havia comida de porco ou não. Tinham que acordar cedo, senão outros chegariam primeiro e pegariam a comida dos porcos deles.

Certa vez, chegaram numa casa e encontraram muita comida. Tanta que não coube nos seus baldes. Como não era comum achar aquele tipo de oportunidade, tiveram que colocar o máximo que puderam pra que não voltassem no dia seguinte. Após encherem seus baldes, a água começou a esvaziar nas suas faces e nas costas.

Foto de Virgínia Maria Yunes – Guiné-Bissau

Debaixo de chuva, voltando com aquela mistura homogênea nas faces, travessando rua por rua, relâmpago de um lado e outro, vento soprando fortemente, eles mantinham-se inabalados, pois haviam conseguido o que queriam. Mal sabiam o que estava prestes a acontecer em casa.

Ao chegarem em casa, tomaram banho debaixo de chuva e depois tomaram o mata-bitcho (café da manhã). Seus pais eram pobres, mas sempre lutavam pra que nada faltasse de comer em casa. No que diz respeito à necessidade secundária, eles não tiveram boa oportunidade pra tal, porque o que interessava aos pais era encontrar a comida pra eles. Depois do mata-bitcho, tinham que ficar sentados pra aguardar o horário do almoço. Não havia TV em casa, muito menos corrente elétrica, porque os pais não possuíam dinheiro pra tais coisas. Sendo assim, tinham de fazer algumas criatividades pessoais pra passar o tempo.

O Kit ton, após um bom tempo sentado junto de seu irmão, resolveu sair debaixo da chuva pra jogar bola com os colegas. Por coincidência, Nramba o viu debaixo de chuva e disse-lhe: “— Anda cá! Não te falei pra deixar de jogar debaixo de chuva? Vá tomar banho que depois nos resolvemos”. Há um mito guineense segundo o qual, se a pessoa está debaixo de chuva e porventura houver relâmpago, iran sempre vai procurar um lugar onde se esconder. Se não encontrar uma árvore ou se estiver na árvore, ele fugirá do relâmpago e se esconderá na pessoa. Se ele entrar na pessoa, significa que ela vai morrer. Por isso a mãe não os deixava ficar debaixo de chuva.

Besna, sabendo que o irmão apanharia, ficou triste. Kit ton, por sua vez, depois de tomar banho, foi espancado pela mãe. O pai deles, Fona, estava no trabalho e não sabia o que estava acontecendo em casa. Sua maior preocupação era levar algo de comer pra casa.

A chuva caiu durante umas três horas, sem cessar. Tão forte, que era capaz de arrastar uma pessoa na rua. E eles dentro, com tanto frio, nem podiam dormir, pois a casa estava alagada. Tiveram que ajudar a mãe e o irmão mais velho, Rumon, a furar um buraco na parede pra que saísse a água. Besna segurava uma vara pra consertar alguns buracos que permitiam à água descer. Kit ton estava a consertar saco plástico sobreposto em cima da tenda que segurava a água pra não cair na cama. Aquela tarde era inusitada pros três meninos. Nunca tinham passado por aquele tipo de experiência. Entretanto, juntos, pensamento positivo, pra ultrapassar aquela situação que abalou todos eles.

Depois de certo tempo, tudo parecia estar bem, mas não estava. Chegando a noite, os ventos vieram tão fortes, que arrancaram as palhas que cobriam a varanda. Paredes molharam e, ao mesmo tempo, desgastaram-se de forma tão rápida, que acabaram por rachar no meio. Kit Ton, o pai e o irmão tiveram que acordar pra tentar dar um jeito em tudo. Pegaram numa madeira de barro e encostaram ela à parede pra assegurar que não caísse até o amanhecer.

Chegou a manhã sem chuva. Ao contrário: com tanto sol, que até deixava as pessoas chateadas por causa do calor. Besna e Kit ton estavam ansiosos pra brincar, pois, como haviam encontrado comida em abundância pros porcos no dia anterior, já tinham cumprido sua missão. Mas a mãe instituiu-lhes outra tarefa. Uma inédita. E, debaixo de sol, tiveram que ir vender mancarra (amendoim) ao lado da estrada do quartel-general de Bissau. Sentados lá, sem tomar mata-bitcho, ficaram pensando que a mãe não estava a fazer algo de bom por ter deixado eles irem vender na estrada. Aquele dia seria de folga! Iam poder jogar bola com os colegas e fazer muitas brincadeiras!

Depois de ficarem mais de sessenta minutos na estrada do quartel-general, a mãe foi ficar por conta deles pra que fossem tomar mata-bitcho e depois voltassem pra vender até o horário do almoço. Seus colegas passaram. Estavam indo jogar. Sabe aquele tipo de sensação que a criança tem que a leva a pensar que deve fazer algo que seus parceiros estão fazendo, mas ela está impossibilitada porque há outro algo na sua espera? Esse era o sentimento que eles tinham, mas não conseguiam se libertar daquela situação. E eles sedentos de ir jogar! Mas não podiam. Nem tinham coragem pra tal. A mãe estava na estrada aguardando por eles. Estavam andando tão desanimados pela estrada. Com as cabeças curvadas. Cada um jogando pedras.

Às vezes, mancarra acabava antes do almoço, mas, muitas vezes não. Ainda mais naquele dia, que estava batendo muito sol. De volta às vendas, sentaram-se. Kit Ton disse ao Besna que fosse jogar e ele ficaria vendendo por sua conta. Mas Kit Ton estava com a ideia voluptuosa de posteriormente estar no campo pra praticar com o irmão e os colegas. Não podiam simplesmente abandonar o posto de serviço, por assim dizer. “Toda criança tem direito”, pensava Kit ton. Essa concepção do direito era superficial pra eles, porque, na maior parte do tempo, estavam concentrados nos afazeres pra ajudar a mãe. Besna foi.

Quando voltou, cheio de suor, explicou minuciosamente a Kit ton sobre o que aconteceu no campo e Kit ton, por mais prosaico que seja no jogo, disse-lhe: “— Da próxima vez, eu que irei”. Ambos se colocaram em acordo. E tudo deu certo! A hora de ir almoçar não tardou. A mãe chegou, logo foram embora e não retorquiram.

Preparação de originais e revisão de texto: Caroline Rodrigues Cardoso.

10 COMMENTS

  1. Meu carro irmão Bernardo , emocionei com a historia muitas vezes vivi as cenas parecidas com essas, te desejo muita força e mais luz pra o se caminho, Meus Parabéns
    estou aguardando a continuação porque sei que tem sim rsrsrs

  2. Muita força irmão Bernardo (Toto), gostei muito do texto. Me faz lembrar da minha infância. Fui muitas das vezes impossibilitado pelos meus pais, me dava sensação que não me amavam, mas hoje percebi que tudo que faziam era para o meu bem… Continue escrevendo!