“Misérias”, Por Ademir Barros dos Santos

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escravidaoPor Ademir Barros dos Santos – Por dentro da África

Sorocaba, São Paulo – Vamos abordar, neste rápido ensaio, uma das diversas misérias que atingem o cidadão comum: a pobreza; outras há, que empurram cidadãos honestos para periferias diversas, quer culturais, quer sociais, etc., etc. – mas que deixamos para outras abordagens, por quem se interesse por estudos pertinentes.

Por enquanto, lembremos que o Brasil completou, recentemente, quinhentos anos de existência; destes, pouco mais de trezentos e cinqüenta baseados na economia da escravidão.

Mais especificamente: em cinco séculos, o Brasil viveu quase quatro sob escravidão; o restante – pouco mais que um, somente – sob o signo da liberdade; quatro para um: enorme proporção que se esconde, renitentemente, de nossos livros, nossas escolas, nossos conhecimentos… e de toda a sociologia.

ONU - FOTO
Foto: ONU

Entretanto, se olharmos mais de perto, esta é a causa primária das calamidades sociais que vicejam na economia nacional; daí que nossas dificuldades de distribuição de renda não se originam só em Brasília, mas, principalmente, na senzala.

Vejamos com calma, apartidariamente: a economia moderna, capitalista e industrial, produz imensurável quantidade de bens, perversamente mal distribuídos; grande parte da riqueza produzida é destinada a poucos agraciados pela sorte, enquanto à grande maioria, que vive ou sobrevive com quase nada, mesmo abaixo da linha de pobreza, sobram sobras; lado a lado à riqueza demasiada de poucos, a pobreza endêmica é fato concreto, intoleravelmente tolerada e disseminada.

Evidentemente, há causas e efeitos de tal situação: os efeitos são por demais conhecidos, sentidos, vividos, sofridos pela grande maioria; também são estudados, discutidos, “solucionados” pela elite, política ou não. Entretanto, soluções, mesmo, só aparecem em parcos projetos, que nunca chegam ao carente, ao sem-terra, sem-teto, sem-nada… ou seja, ao verdadeiramente despossuído, que é quem realmente interessa.

Portanto, não vamos discutir os efeitos: evitemos chorar. Vamos direto ao que, aparentemente, podemos chamar de causas; para tanto, contra a vontade, somos obrigados a voltar a 1888. Melhor: a 1500.

A partir de então, por razões que não vêm agora ao caso, formou-se, no Brasil, forte sociedade escravista, que gerou, naturalmente, uma elite que viveu, sobreviveu, engordou, enriqueceu, cresceu e dominou… bebendo sangue escravo, sangue de quem trabalha e não ganha, sangue dependente que, ou obedece, ou apanha. Isto, por quase quatrocentos anos…!!!

Esta elite, formada pela ociosidade, pelo amor ao poder e ao mando, intolerante por definição, nunca se dispôs, evidentemente, a descer do trono irracional a que, indevidamente, se alçou, para escutar reivindicações do populacho, miúdo e escravo… embora a escravaria formasse a maioria da população nacional à época: em 1835, por exemplo – pouco mais de cinqüenta anos antes da Lei Áurea – a população de Salvador estava próxima a 65.500 habitantes: 63%, negra! O quadro se repete no Rio de Janeiro, Minas Gerais, São Paulo, com percentuais bastante próximos. Quando não, igualmente lamentáveis.

Porém, dos 37% livres, grande parte era pobre e, se possuía escravos, não passavam de um ou dois, apenas; daí que nada mais que 10% da população – ou algo em torno disso – possuía terras, formando a elite dominadora do poder e da economia, então eminentemente agroexportadora. Isto, há apenas cento e poucos anos atrás – ou seja, a duas ou três gerações!

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Foto: WWF

Pois bem: com espasmos sem efeitos práticos durante a ditadura Getúlio Vargas e o governo Juscelino Kubistchek, os filhos dos pobres que, evidentemente, não são só os filhos de escravos – e aqui já estamos abrangendo 63% da população, como vimos – não foram olhados pela elite – exceto em bissextas campanhas político-eleitorais.

O quadro fica agravado pelo Nordeste: à época imediatamente anterior à Lei Áurea, viu ele sua agricultura e economia em plena decadência frente à pujança do Sudeste industrial e exportador, o que o obrigou a exportar gente para lá; mas o Sudeste, incapaz de produzir o suficiente para sustentar o contingente daí advindo, também fez com que decaísse o nível de sua distribuição de renda, empobrecendo toda a população.

A elite, que se formou a partir da mão-de-obra escrava, passou então a utilizar-se da leva de migrantes nordestinos, perpetuando a escravidão – agora batizada de salário, insuficiente e de fome; a elite nordestina, entretanto, perpetuou-se, formando currais eleitorais apoiados no analfabetismo endêmico, que faz par à fome endêmica. Isso, até os dias de hoje.

Unesco - Divulgação

Agrava o caso brasileiro a imigração estrangeira que, incentivada e priorizada imediatamente antes do final da escravidão, substituiu a mão-de-obra local pela importada; a esta, foram cedidos terra e emprego, de onde os egressos do sistema escravista viram-se, desde logo, alijados: em decorrência, qualquer possibilidade de ascensão social foi-lhes tolhida. Na fonte; e definitivamente.

Agrava-o mais, além da tecnologia e do liberalismo mundial que se consubstancia na meritocracia, a economia que, globalizada segundo o modelo americano e sob a bandeira da oportunidade igual para todos, não prepara a todos igualmente; esta postura, já por si, destrói o discurso: como a oportunidade é igual para todos, se o preparo é desigual?

Aqui, caímos nas instituições oficiais; principalmente, na instituição formadora: a escola. Refratária. Perversa. Engessada…

Mas, esta é outra estória.

Ademir Barros dos Santos é coordenador da Câmara de Preservação Cultural do Núcleo de Cultura Afro-Brasileira – NUCAB – da Universidade de Sorocaba – UNISO.

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