Fronteiras da violência nos corpos das mulheres na República Democrática do Congo

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Foto de UNICEF – Ilustração de publicação de violência contra a mulher

Por Bas’llele Malomalo, Por dentro da África

Artigo publicado em Sociedade em Debate 

No dia 10 de dezembro de 2018, em Oslo, o doutor Denis Mukwenge (2018) pronunciava o seu discurso de Laureado do Prêmio Nobel. Parto desse discurso para elaborar minhas reflexões sobre o que chamo de “Fronteiras de violências nos corpos das mulheres na República Democrática do Congo (RDC)”.

Esse discurso é interessante por muitos motivos e entre os mais importantes destacaria o fato de marcar  uma linha divisória entre vinte e um anos de um grupo ligado à família política de Kabila (o pai, Laurent Désiré Kabila e o filho Joseph Kabila) que pretendia estabelecer a democracia no país, mas, apesar de alguns acertos no campo da política e da economia, não conseguiu trazer a paz desde que derrubou o regime ditatorial de Mobutu em 1997. O discurso foi pronunciado nas vésperas das eleições presidencial e legislativa
que trouxeram um novo presidente da república, apesar de J. Kabila continuar a concentrar todo poder nas instituições do Estado. O segundo motivo é que o discurso é uma memória história. Contém elementos que interpelam para reflexões históricas e sociológicas sobre a violência feita contra mulheres durante 21 anos, considerando o período de 1997 até 2018.

Esse trabalho tem por objetivos analisar as violências cometidas contra as mulheres congolesas nos territórios que foram atingidos pela guerra que tinha iniciado em 1996; atualizar as informações sobre os números das vítimas; as formas multidimensionais dessa violência; e compreender a particularidade que as violências sexuais assumem nessas guerras e conflitos pós-guerra.

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A abordagem adotada é interdisciplinar, com foco na história e ciências sociais. As fontes à minha disposição são documentais e bibliográficas. As primeiras são compostas de matérias jornalísticas e relatórios sobre as guerras e conflito dos Grandes Lagos e, especialmente da RDC, produzidos pelas imprensas e institutos de pesquisa, organizações da sociedade civil internacionais e/ou congolesas e pelas agências das Nações Unidas.

As fontes bibliográficas, que uso, tratam de temas de território, fronteiras e migrações na sua relação com a questão violências e de gênero no mundo, na África, na região de Grandes Lagos e na RDC. Como esse artigo não objetiva realizar uma discussão teórico, a bibliografia escolhida tem por finalidade subsidiar na análise e interpretação das fontes.
Para analisar e interpretar o material documental à luz das fontes teóricas, recorro ao que Romeu Gomes (2012) chama de método interpretativo de sentido, pautando-me na análise de conteúdo temático.

Isso significa que o meu trabalho intelectual é de elaborar uma reflexão sistemática sobre o material coletado; e, como já foi sinalizado, o discurso do doutor Mukwenge (2018) inspira a estrutura desse texto. Dessa forma, a primeira seção faz uma discussão teórica sobre a questão de gênero em África, partindo da teoria do matriarcado de Amadiume, para compreender o peso do patriarcado e masculinidade negativa africanos na vida das mulheres. A secunda seção é composta de quatro análises que buscam dar conta do que nomeio de “fronteiras de violências nos corpos das mulheres na RDC”.

A primeira subseção Fronteiras de Violências nos Corpos das Mulheres na República Democrática do Congo é uma contextualização sobre a memória de guerras que ocorreram na região de Grandes Lagos, parte leste da RDC e territórios fronteiriços de Uganda e Ruanda desde o período de 1994. A secunda aborda os efeitos das guerras e violências sobre as mulheres congolesas e logo se percebe que se trata de multiplicidade de
violências que além de atingir as mulheres, alcançam igualmente crianças, meninas, meninos e homens adultos. Dessa forma é que a terceira e quarta subseções destacam a questão de crianças-soldados e refugiados/as.

Matriarcado e justiça teórica

Entre as teorias de gênero produzidas no continente africano, identifico-me com a de Ifi Amadiume pela forma como lida com a história africana, na sua dimensão pré-colonial e colonial para interpretar a sua realidade pós-colonial. Além disso, pela forma como faz uso da categoria gênero, fundamentando-se no matriarcado para compreender as dinâmicas próprias das sociedades africanas.

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O paradigma do matriarcado, para Amadiume (2001), destaca o protagonismo das mulheres ao longo da história africana e como ideologia pode servir, no contexto contemporâneo de negação de direitos de mulheres, para a elaboração de política de igualdade de gênero genuinamente africana e isso sem necessidade de importar soluções das lutas feministas branco-euro-ocidentais.

Tudo isso por que as lógicas euro-ocidentais e africanas que informam os gêneros são opostas. Para Amadiume (2001, p. 114), o pensamento que concebe o ser da mulher a partir da lógica da maternidade é ofensivo para muitas feministas ocidentais. É fácil, argumenta ela, compreender isso do ponto de vista do sistema europeu, onde ser esposa e a maternidade significam escravidão das mulheres. No sistema africano do matriarcado, finaliza ela, tudo isso significa o emponderamento das mulheres.

Foto do documentário City of Joy, sobre abusos das mulheres congolesas – Divulgação

Nesse sentido, compreende-se porque para essa autora o matriarcado como ideologia é um sistema de valores que teve implicações na formação das culturas pré-coloniais africanas e continua a guiar não somente as organizações das mulheres africanas, mas igualmente a vida de muitas outras instituições africanas.

Do ponto de vista dos estudos pan-africanistas, a proposta de Amadiume aponta a necessidade de se pensar as categorias científicas sempre como produções socioculturais e históricas. Crítica as teorias ocidentais que reduzem a análise de gênero na distinção biológica de sexo masculino e feminino, pois para ela, nem em todas as culturas que a classificação social do sexo biológico corresponde à ideologia de gênero.

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Isso significa, ao depender de sistemas de gênero como aqueles que ela estuda, mulheres podem desempenhar papeis usualmente reservados aos homens, ou pode ser classificadas como ‘homens’ em termos de exercício do poder ou autoridade (AMADIUME, 2001, p. 112; 1998, p. 185). Gênero visto como ideologia pode ser manipulado positivamente ou negativamente por homens e mulheres. Manipular significa usar o gênero como política imperialista, portanto com fins de exercer a violência; ou como política
emancipatório que visa a libertação de mulheres “e” homens.

Em busca de teorização sobre o gênero, na perspectiva do matriarcado, Amadiume encontrou nos sistemas africanos de gênero a flexibilidade que permite a construção de um gênero-neutro para além do masculino e feminino que permitem que esses últimos trocam seus papeis. “In the indigenous society, the dual-sex principal behind social organization was imediated by the flexible gender system of the tradicional culture and language” (AMADIUME, 1998, p. 185).

Portanto, além das categorias de ‘homens’ e ‘mulheres’ que definem as identidades sociais entre os Nnobi da Nigéria, Amadiume encontrou as de ‘filhas masculinas’ e ‘maridos femininos’. Essas últimas são mulheres que, na sociedade tradicional matrifocada examinada, gozavam de autonomia religiosa, política e econômica. O fenômeno da cultura do matriarcado existente em muitas sociedades africanas é atestado por muitos estudos. Além disso, tem influenciado, ao longo da história colonial e pós-colonial, as organizações
de mulheres africanas (AMADIUME, 1998, p. 186; OYEWUMI, 2018, p. 179).

Em busca de superar os desafios para conceitualizações na epistemologia africana, Oyewumi traz essa reflexão que esclarece a sua crítica contra a proposta teórica do feminismo euro-americano e dos estudos africanos de gênero.

A dificuldade em aplicar os conceitos feministas para expressar e analisar as realidades
africanas é o desafio central dos estudos africanos de gênero. O fato das categorias de
gênero ocidentais serem apresentadas como inerentes à natureza dos corpos e operam de
maneira dicotômica – binariamente opostas masculino/feminino, homem/mulher -, em
que o masculino é considerado superior em relação ao feminino e, consequentemente, a
categoria definidora, é particularmente exógeno a muitas culturas africanas. Quando as
realidades africanas são interpretadas com base em demandas ocidentais, o que
consideramos são distorções, disfarces na linguagem e, muitas vezes, uma total falta de
compreensão devido à incomensurabilidade das categorias sociais e institucionais.
(OYEWUMI, 2018, p. 179).

Esse repensar os estudos de gênero do paradigma do feminismo euro-ocidental leva Oyewumi e Amadiume, no contexto de pesquisas construídas por mulheres negras, africanas e afrodiaspóricas, a sugerir a consideração de outras variáveis, como classe, raça, etnia e idade, na investigação. Há outras categorias como migração e meio ambiente que aparecem nos estudos africanos de gênero (MAMA, 2004; ZELELA, 2004) e no eco-feminismo (MIES; SHIVA, 1993) que devem ser tratadas igualmente como categorias
plurais, de forma situacional e relacional, considerando-se os aportes das teorias de intersecionalidades e complexidade (THESEE, 2017; MORIN, 2005).

Em seus estudos entre os Yoruba, Oyewumi (2018) destaca que é a categoria de senioridade que é definidora de relações socais e não a categoria de gênero, uma vez que que, conforme ela, as famílias Yoruba não são marcadas pelo gênero, já que os papeis de parentesco e suas categorias não são diferenciadas por gênero.

Oyewumi (2018) além do material referente a família Yoruba, lança à mão sobre outras matérias provenientes de outras culturas africanas, e chega às mesmas conclusões de Amadiume (2001) sobre linguagem africana em flexibilizar as categorias de gênero além da oposição binária masculino/feminino.

No meu entendimento o que Oyewumi nega das análises feministas ocidentais de gênero é partir de uma ideia do corpo-biológico ou a diferença sexual para se definir o lugar de superioridade do homem e de inferioridade da mulher e depois generalizar essa ideia. Amadiume (1998, 2001) nega igualmente essa concepção biologizante, e compreende o gênero, a partir das culturas africanas, como uma ideologia que definem as identidades socais conforme as estruturas culturais do patriarcado e do matriarcado.

O debate historiográfico, sociológico e antropológico africano sobre o patriarcado e o matriarcado, liderado por Diop (1982),  conclui pela anterioridade do matriarcado sobre o patriarcado africano. Isso faz com que a partir dos materiais levantados por Amadiume (2001, 1998) e Oyewumi (2018), percebe-se que em muitas sociedades africanas os sistemas culturais patrilineares conviveram e convivem ao lado dos sistemas culturais matrilineares. Ou ainda, algumas culturas tidas por patrilineares conservam ainda muitos
dos valores do matriarcado, um desses valores é a reverência que todos/as africanos/as, homens e mulheres, deve ter para com a mulher, sendo ela mãe ou não. É considerado sagrado quando passa pela experiência de maternidade.

Ser mãe é tido, nas culturas africanas, como um ato e realidade divina. Toda mulher é vista, nessas culturas, como mãe em potência. O corpo da mulher é vista simbolicamente como um corpo-sagrado pelo fato de possibilitar a expansão da vida e da linhagem.
A dimensão da sacralização do corpo, nas culturas africanas, estende-se, de fato, para o corpo do homem e o corpo da mulher. Quis em cima focar na sacralização do corpo feminino com destaque no valor da maternidade.

Acontece que nas culturas africanas cada ser humano e não humano merece reverência por proceder do Grande-Ser-Sagrado. Muniz Sodré (2017), em Pensar Nagô, mostra quanto o que define as identidades sociais, nas culturais africanas, é o corpo-simbólico e não o corpo-biológico. Tudo isso acontece por que, para esse autor, essas culturas funcionam a partir de uma linguagem simbólica inclusiva e não a partir de uma linguagem discursiva-racionalista binária e excludente.

Estudar o gênero na ótica das ciências sociais na África exige considerar as transformações
históricas (ZELELA, 2004) pelas quais passam as sociedades africanas e que afetam positiva ou negativamente as relações de gênero. Desse ponto de vista, considero as investigações feitas por Amadiume (1998, 2001) profundas e valiosas na e para análise e interpretação das relações de gênero numa perspectiva histórica africana de longa alcance. Amadiume (2001) faz uso da história social e sociologia história das sociedades africanas, considerando as mudanças ocorridas na África pré-colonial, colonial e pós-colonial.
O que é de admirável em seus estudos ainda é o destaque na questão do imperialismo,
fundamentando-se em Cheikh Anta Diop (1982), desde a consolidação do imperialismo árabo-muçulmano no século XIV. Tal perspectiva correspondem com as abordagens de muitos estudos africanos pós-coloniais (ZELELA, 2004; MAMA, 2004) e da decolonialidade (BERNADINO-COSTA; MADOLNADOTORRES; GROSFOGUEL, 2018). Defendo que as mudanças em curso na África deveriam ser observadas desde a entrada paulatina do imperialismo árabo-muçulmano desde o século VIII e do imperialismo cristãoocidental desde o século XV na África (MOORE, 20017).

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Ouça o podcast ‘Filosofia africana do Ntu e direitos biocósmicos’ com o professor congolês aqui 

Bas ́Ilele Malomalo  é Doutor em Sociologia pela Universidade Estadual Paulista Júlio Mesquista/UNESP (2010), é docente de graduação nos cursos das Relações Internacionais, Ciências sociais e Mestrado Interdisciplinar em Humanidades (MIH) do Instituto de Humanidades e Letras (IHL) da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB), coordenador do Grupo de Pesquisa África-Brasil