Mbamza Hanza, um dos ativistas presos

Por Susan de Oliveira, Por dentro da África

A pesquisa da professora Susan de Oliveira contextualiza o cenário da prisão de 15 ativistas angolanos detidos desde o dia 20 de junho acusados de “alterarem a ordem pública do país” – Opine no fórum abaixo! 

Em 2013, esses jovens ficaram conhecidos como fundadores do Movimento Revolucionário Angolano (MRA) e fazem parte da geração que soma a herança de duas guerras, a de Independência (1962-1974) e a Civil (1975-2002) e que estão, portanto, vivendo um recentíssimo período de paz ao mesmo tempo em que percebendo o limite do que restou do projeto de nação após esses conflitos.

Eles são os descendentes dos revolucionários que dedicaram suas vidas à luta pela independência que culminou no atual regime o qual se anunciava socialista e democrático em seus primórdios, mas mostrou-se o contrário disso ao longo dos anos. Hoje, essa geração mais jovem enfrenta, sem perspectivas, as mazelas de um país capitalista e profundamente desigual que prospera economicamente e cultiva, a despeito disso, um caos social decorrente da falta de políticas públicas em vários setores – como saúde, educação, habitação, saneamento básico, emprego – e do ataque sistemático aos direitos humanos promovidos pelo atual governo de José Eduardo dos Santos que assumiu o poder em 1979, sucedendo a Agostinho Neto (1974-1979), então falecido.

Saiba mais sobre o caso aqui: Ativistas em greve de fome mobilizam sociedade 

O MPLA que governa desde 1974, sendo José Eduardo dos Santos o presidente nos últimos 36 anos, enfrenta por seu turno a indignação de opositores entre os quais os partidos históricos UNITA e FNLA, e os mais recentes BD (Bloco Democrático), CASA-CE (Convergência Ampla da Salvação de Angola), PDP/ANA (Partido Democrático para o Progresso/ Aliança Nacional de Angola) e esse jovem Movimento Revolucionário apartidário que expressa a revolta social com mais veemência que os cinco partidos políticos juntos.

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O Movimento Revolucionário Angolano, composto por jovens que se autodenominam “revus”, tem organizado vários protestos e manifestações por direitos humanos e justiça social. Tem uma agenda própria, organização horizontal e libertária, direção e ações coletivas que visam inicialmente conscientizar o povo da necessidade de mudanças profundas na sociedade angolana, sendo todas elas vinculadas à saída de José Eduardo dos Santos do governo (“32 é demais” foi o lema inicial do Movimento, relativamente aos anos de governação de “Zé Du”).

Capa do DVD Geração da Mudança

No cerne dessa proposta, apoiada na transformação cultural e política dos jovens angolanos, estão vários rappers que, em suas letras e vídeos e em suas participações ativas nos protestos, produzem um discurso de forte impacto e penetração social sobre a violência policial e os ataques aos direitos humanos por parte do governo promovendo através de sua poética os valores igualitários dos jovens das periferias angolanas.

Nas palavras do rapper Luaty Beirão, conhecido como Ikonoklasta, podemos ter ideia do histórico dessa ligação dos rappers com o ativismo social do MRA. Diz ele:

Tu vens do Hip-Hop, daquilo a que se pode chamar o Hip-Hop verdadeiro, underground por natureza. O Hip-Hop é político, foi assim que surgiu, como uma arma, um meio para expressar a revolta. Desde Dead Prez, passando por Chullage, até ao MC K, são vários os MC’s e os temas que nos fizeram pensar, que nos despertaram a consciência para problemas urgentes da sociedade. A cena em Angola pareceu-me ser bastante interessante e original. Num concerto em que estive, a sala estava cheia de pessoal atento às letras e havia vários rappers a rimarem sobre o quotidiano e a vida do povo, o que só por si já é uma denúncia da pobreza em que as pessoas vivem. Estarei a romantizar? Ou poderá o movimento de Hip-Hop angolano ser também um movimento de resistência? O movimento Hip Hop angolano é a força motriz por detrás desta juventude que agora começa a rasgar a manta do medo e a gritar a plenos pulmões JOSÉ EDUARDO FORA! […]

Luaty Beirão, um dos presos políticos

Aqui em Angola o Hip Hop consciente, vulgo underground, vulgo revolucionário, é sem sombra de dúvida a banda sonora desta juventude que está nas ruas e isso digo-o porque o testemunhei de forma inequívoca. (Jornal Mapa, 28/09/2012)

Muitos casos de violência ligados à repressão das manifestações organizadas pelos jovens angolanos têm repercutido desde 2011, e mais especialmente desde maio de 2012, quando em uma manifestação pacífica, em Luanda, a polícia angolana reprimiu violentamente a ação dos manifestantes culminando no desaparecimento dos ativistas Alves Kamulingue e Isaías Cassule. Em 22 de dezembro de 2012, o Movimento convocou uma nova manifestação para cobrar providências legais sobre o caso.

Antes da manifestação, se dirigiu ao ministro do Interior, Ângelo Tavares, uma comissão composta por familiares dos ativistas desaparecidos e os representantes do MRA, os rappers Luaty Beirão, Carbono Casimiro, Mbanza Hamza e também Manuel Nito Alves.

Nito Alves

Nito Alves, um dos presos políticos

Conforme o Jornal Angonotícias, de 21/12/2012, Ângelo Tavares afirmou que a justiça angolana não tinha nenhuma denúncia formal e que mesmo com as várias diligências as investigações não avançaram na descoberta do paradeiro dos ativistas. Na ocasião, o rapper Luaty Beirão disse estar “decepcionado quando nos dizem que não seguem a imprensa privada e não são obrigados a saber. Ninguém é.

Portanto alegam isso para não terem conhecimento do caso […]”. O ativista Nito Alves posicionou-se ceticamente em relação ao encontro: “No mínimo foi tudo uma bajulação política, eles queriam apenas conhecer quem são esses jovens. Esses dirigentes não vão resolver o problema”, disse ele ao mesmo Jornal.

O jovem Nito Alves, então com seus 16 anos, teve razão em afirmar que a justiça e a polícia angolana ao receberem os representantes do Movimento Revolucionário pretendiam apenas identificar seus membros, pois ele próprio fora vítima de uma perseguição em dezembro de 2012 e de mais outra, por ocasião da manifestação marcada para o dia 19 de setembro de 2013.

‘Essa última manifestação pretendia, além de continuar exigindo respostas sobre o desaparecimento de Kamulingue e Cassule, cobrar as responsabilidades do governo sobre outras brutalidades policiais como a tortura aos presos na cadeia de Viana (região de Luanda), a perseguição e espancamento das zungueiras (vendedoras ambulantes) e também sobre as demolições e despejos violentos em Mayombe, bairro de Cacuaco (região próxima à Luanda), bem como as providências em relação aos quase um milhão de famintos da região sul de Angola, Huíla e Namibe, vítimas da maior seca em 35 anos naquela área.

Antes dessa manifestação de 19 de setembro, precisamente no dia 12, o jovem ativista Nito Alves, já com 17 anos, cursando o 9o ano escolar e filho único, foi preso ao transportar as t-shirts que seriam usadas no protesto. O “crime” alegado foi difamação do presidente da República por estas frases estampadas nas t-shirts: “José Eduardo fora! Ditador nojento” e “Povo angolano, quando a guerra é necessária e urgente”.

Maka Angola
Maka Angola

Essa última frase, aliás, é o título de um artigo e de um livro do jornalista Domingos da Cruz, publicados em 2009. O jornalista também foi acusado do crime de incitação à violência e à desobediência coletiva, mas foi absolvido pelo Tribunal Provincial de Luanda. O juiz confirmou a inexistência de tal crime no ordenamento jurídico angolano. Nito Alves, nesse caso, não poderia ter a culpa formada, mas, mesmo assim, permaneceu preso, pois era preciso retirar de circulação a ameaça que representava o jovem. E qual seria? A sua disposição revolucionária.

[…] durante o seu interrogatório e na cela da esquadra do Capalanca, onde passou a primeira noite, antes de ser transferido para as celas da Direcção Provincial de Investigação Criminal (DPIC), Nito Alves revelou os seus dons de mobilização. Politizou os outros detidos sobre o regime e os seus actos e juntos fizeram coro contra as injustiças, para irritação dos seus guardas.

O adolescente foi transferido da Direcção Provincial de Investigação Criminal de Luanda onde se encontrava em cela solitária para “lugar incerto” no dia 04 de outubro de 2013 e os advogados informaram que se encontrava adoentando mas que não tinham detalhes. (Jornal Maka Angola, 14/10/13)

Não se pode deixar de pensar no fantasma que o nome do miúdo Nito Alves evoca, sendo esse nome uma homenagem dos seus pais ao revolucionário comunista Nito Alves, morto em 1977, a mando de Agostinho Neto, após uma controversa tentativa de golpe por parte de governistas críticos ao MPLA que, sendo uma oposição interna do partido, foi chamada, portanto, de movimento “fraccionista”.

Tal tentativa golpista teria sido organizada por Nito contra Neto e estaria na origem da alegada motivação para o massacre ocorrido em maio de 1977 no qual foram torturados, exilados e mortos milhares de angolanos tidos como traidores do regime, alcunhados de “nitistas”.

O expurgo intra-governo realizado naquela época bem como o silenciamento posterior imposto sobre ele pelo regime de Agostinho Neto e José Eduardo dos Santos é hoje um assunto que revive traumas e grandes tensões entre governistas e opositores. Segundo refere Lara Pawson (2014), é este acontecimento inaugural o que nos permite compreender a quase nula participação popular em manifestações em Angola como uma cultura do medo.

Por Susan de Oliveira, publicado em buala.org e cedido ao Por dentro da África. Susan é pesquisadora de literaturas africanas, culturas de periferias e professora na UFSC.

Leia toda a pesquisa O rap e o ativismo pelos direitos humanos em Angola

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