As políticas de branqueamento (1888-1920): uma reflexão sobre o racismo estrutural brasileiro

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Escravidão no Brasil – Gravura de Jean-Baptiste Debret

Renan Rosa dos Santos, Por dentro da África

Embora o Brasil tenha uma população consideravelmente miscigenada e
transmita ao mundo uma imagem de sociedade tolerante e acolhedora, diversas
situações de preconceito e discriminação racial contra pessoas negras insistem em
ocorrer por todo o país. Além dessas lamentáveis situações, o racismo no Brasil se
constitui como um fenômeno estruturante de sua sociedade. Esse fato se evidencia
quando nos deparamos com alguns números que escancaram o abismo que existe entre
negros e não negros na sociedade brasileira, distanciando o país da possibilidade de ser
uma democracia racial.

Os números apresentados a seguir são resultados das pesquisas
PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra a Domicílio), realizadas pelo IBGE (Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística) e foram publicados em matéria da revista Exame,
em 20 de novembro de 2018. É importante mencionar que, de acordo com os critérios
do IBGE, são considerados negros os autodeclarados pretos e pardos. Esse grupo
constitui 54,9% da população brasileira, de acordo com os números mais recentes (8,2%
de pretos e 46,7% de pardos 2 ).

Trabalho e renda
A PNAD Contínua de 2017 mostra que há forte desigualdade na renda média
do trabalho: R$ 1.570 para negros, R$ 1.606 para pardos e R$ 2.814 para
brancos. O desemprego também é fator de desigualdade: a PNAD Contínua do 3º
trimestre de 2018 registrou um desemprego mais alto entre pardos (13,8%) e
pretos (14,6%) do que na média da população (11,9%).

Educação

A taxa de analfabetismo é mais que o dobro entre pretos e pardos (9,9%) do que entre brancos (4,2%), de acordo com a PNAD Contínua de 2016. Quando se fala no acesso ao ensino superior, a coisa se inverte: de acordo com a PNAD Contínua de 2017, a porcentagem de brancos com 25 anos ou mais que tem ensino superior completo é de 22,9%. É mais que o dobro da porcentagem de pretos e pardos com diploma: 9,3%. Já a média de anos de estudo para pessoas de 15 anos ou mais é de 8,7 anos
para pretos e pardos e de 10,3 anos para brancos 3 .

Já o Atlas da Violência 2018 4 , pesquisa produzida pelo Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), demonstra que uma das principais facetas da desigualdade racial no Brasil é a concentração de homicídios entre a população negra. Essa pesquisa aponta que, no ano de 2016, o número de negros assassinados no país foi de 40,2 para cada 100 mil habitantes, enquanto o número de não negros (brancos, amarelos e indígenas) assassinados no mesmo período foi de 16,0 para cada 100 mil
habitantes.

Todos esses números não deixam dúvida: as extremas desigualdades existentes no Brasil possuem uma dimensão racial. E por que esse fenômeno ocorre? A análise da formação da sociedade brasileira, a partir do prisma da História, pode fornecer respostas para esse questionamento. Sem dúvida, uma das razões para o racismo estrutural brasileiro se trata dos séculos de exploração da mão-de-obra de africanos escravizados e de seus descendentes.

No Brasil, o sistema escravista foi superado através de um incompleto processo de abolição, que não procurou estabelecer um projeto de inserção social e econômica aos egressos do cativeiro na nova ordem que se estabeleceu após 13 de maio de 1888. E uma das razões centrais para esse abandono dos negros após a superação da escravidão foi o pensamento racialista em vigência entre o final do século XIX e as
primeiras décadas do século XX.

Esse pensamento justificou, entre outras políticas, o incentivo à imigração europeia por parte das elites econômicas e do próprio Estado, enquanto, ao mesmo tempo, defendia a ideia de que os não-brancos, principalmente os negros, representavam um fator de atraso para a nação brasileira e, portanto, não era interessante promover sua integração.

Podemos afirmar que o abandono das populações egressas da escravidão, bem como de seus descendentes, foi uma ferramenta do projeto de branqueamento do Brasil, pois através desse abandono, estimava-se que o país iria se livrar dos negros. Mas ainda estamos aqui, buscando superar o abismo no qual fomos lançados. A seguir, um panorama da formulação do pensamento racialista brasileiro, que legitimou o incompleto processo de abolição e as políticas de branqueamento.

Brasil e a modernização à europeia

A partir da década de 1870, um intenso debate sobre a modernização do Brasil e a construção de sua identidade nacional ocorria entre as elites políticas e intelectuais do país. Um dos assuntos centrais que pautavam esse debate era a questão racial. Essa discussão ocorria à luz de teorias então consideradas científicas, que defendiam a superioridade do homem branco, além de afirmarem que a miscigenação entre
diferentes raças humanas 4 causava degeneração. Em regra, os intelectuais brasileiros assimilavam essas ideias sem qualquer contestação e questionavam apreensivos como o Brasil se desenvolveria, uma vez que o país era constituído em sua maioria por uma
população não branca – negros, indígenas e mestiços.

Acreditar nas teorias racistas, formuladas na Europa e nos Estados Unidos, era conveniente para as elites brasileiras, pois assim seria possível legitimar e naturalizar as hierarquias sociais existentes no Brasil, mesmo após o final da escravidão. Por outro lado, aceitar o racismo científico significaria admitir que a nação brasileira, em sua maioria, era composta por uma população racialmente inferior. Para superar esse obstáculo, foi formulada no Brasil uma reinterpretação endógena dessas teorias estrangeiras: a tese de branqueamento. Conforme o apontamento de Lilia M. Schwarcz: “A saída foi imaginar uma redescoberta da mesma nação, selecionar e digerir certas partes da mesma teoria, com a evidente obliteração de outras; enfim, prever ‘um modelo racial particular’” (SCHWARCZ, 1996, p. 89).

A tese de branqueamento se constitui num processo de eugenia, no qual a população brasileira iria “europeizar-se” a partir de três fatores: influxo de imigrantes 5 Anteriormente o conceito de raça era carregado de um sentido biológico, que buscava definir diferenças objetivas entre as raças humanas. Os avanços de áreas como a genética a partir da segunda metade do século XX trouxeram evidências de que não existem diferenças biológicas entre as populações humanas que autorizem dividi-las em “raças”.

Porém, a desconstrução da raça biológica não apaga a evidência da raça simbólica Cf. Pena & Birchal, (2006); D’adesky, (2005 apud ABRAHÃO SOARES 2012). europeus para o Brasil; estimulo à miscigenação; abandono da população negra, egressa da escravidão. De acordo com as visões dos maiores entusiastas dessa tese, em cerca de um século, os negros já teriam desaparecido do Brasil, enquanto os brancos seriam a
maioria da população 5 . Essa tese foi apresentada por uma comissão brasileira, liderada pelo então diretor do Museu Nacional, João Baptista de Lacerda, no I Congresso Internacional das Raças, realizado em Londres, em 1911. Lá, ela recebeu elogios pela
forma pacífica com que os brasileiros resolveriam seu “problema negro”.

Debret – Negra Tatuada Vendendo Cajus – 1827

O Branqueamento na prática

Várias ações foram tomadas para promover o processo de branqueamento, sobretudo na província que contava com maior dinamismo econômico: São Paulo. Um número apontado pelo historiador brasilianista George Reid Andrews joga luz a esse fato: “Entre 1890 e 1914, mais de 1,5 milhão de europeus cruzariam o Atlântico rumo a São Paulo, com a maioria (63,6%) das passagens pagas pelo governo do Estado” (ANDREWS, 1998, p. 98).

No estado de São Paulo podemos constatar a multiplicação de estrangeiros a partir do final do século XIX, sobretudo na sua capital. Entre a última década do século XIX e os primeiros anos do século XX, o número de estrangeiros na cidade de São Paulo excedia os 50% do total de habitantes, sendo que a maiorias dos imigrantes era italiana (SANTOS, 2017, p. 35). Devido à mentalidade da época, os estrangeiros
ocupavam os espaços mais dinâmicos da economia, como indústria e comércio, enquanto que para os nacionais pobres, sobretudo os negros, restavam serviços intermitentes, de menor remuneração e considerados de menor status: carroceiros, varredores de rua, limpadores de trilho, etc. (SANTOS, 2017, p. 137).

Essa exclusão dos negros em relação às ocupações mais dinâmicas não se dava por uma questão de falta de preparo dos mesmos em relação aos imigrantes. Devido aos dados do censo de 1872, sabe-se que negros escravizados exerciam diversas ocupações que exigiam um alto nível de responsabilidade e preparo técnico: há registros de escravos exercendo a profissão de médicos, professores, caixeiros viajantes, lojistas, etc. (JACINO, 2012).

Além disso, grande parte dos imigrantes, sobretudo italianos, que ocuparam os setores da indústria, do comercio e serviços, é egressa de regiões rurais, ou seja, não estavam 6 O trabalho intitulado “Os métis no Brasil”, de autoria de João Baptista de Lacerda, defendia que até 2012 a população brasileira seria composta por 80% de brancos, 17% de indígenas e 3% de mestiços, enquanto a raça negra teria desaparecido (SOUZA SANTOS, 2012, p. 756) acostumados aos trabalhos urbanos e ao ritmo de metrópole que a Paulicéia começava a ter, mas foram integrados mesmo assim.

Portanto, a afirmação de que os negros não tinham o preparo necessário para competirem com os imigrantes não se sustenta. Podemos concluir, portanto, que a marginalização dos negros no período pós-abolição não foi meramente o produto da falta de preparo dos egressos da escravidão em se adequarem ao mercado de trabalho que se estruturou no pós-Abolição, tampouco foi fruto de inabilidade ou negligência por parte das elites políticas e econômicas em relação a essas massas. Na verdade, essa marginalização é resultado do pensamento eugenista, e das políticas amparadas por uma teoria pseudocientífica que tinha como objetivo promover a extinção dos negros do Brasil.

A ideologia abertamente racista das teses de branqueamento foi superada, sobretudo a partir da década de 1930, quando emergiu um novo modelo interpretativo, que buscava representar o Brasil como uma democracia racial, um lugar no qual não existiam “barreiras de cor”. A obra clássica que sintetiza essa mudança de paradigma é o livro ‘Casa Grande e Senzala’, de Gilberto Freyre, publicado em 1933. Por outro lado, tanto os séculos de escravidão quanto as políticas amparadas pela tese de branqueamento contribuíram para o atual quadro de racismo institucional presente no Brasil.

E mesmo a disseminação da ideia de democracia racial foi prejudicial à população negra pois, de modo geral, perpetuou a noção de que não havia necessidade de se pensar em políticas efetivas para a superação das desigualdades raciais existentes no Brasil, ignorando os séculos de cativeiro e as décadas nas quais as teses de branqueamento estiveram em voga, produzindo dessa forma a marginalização econômica e social da população negra, além da construção de uma mentalidade racista, que se faz presente até os dias atuais.

Como já mencionado anteriormente, o sonho de Lacerda e das elites brasileiras do início do século XX ainda não se concretizou. Nós negros ainda estamos aqui. Muitos de nós marginais, sem acesso às condições necessárias para exercermos uma cidadania plena, mas estamos aqui. E, assim como nossos ancestrais que mesmo diante da obscuridade do sistema escravista, resistiram e lutaram bravamente por sua liberdade
enquanto construíam uma riqueza que não nos é dada como herança; enquanto houver no Brasil qualquer resquício das estruturas racistas que formaram esta sociedade, nós também resistiremos.

1- Professor de História da Rede Pública Municipal de Tatuí – São Paulo. Mestrando em História da Escola de Filosofia Letras e Ciências Humanas da Universidade Federal de São Paulo

2 Disponível em https://bit.ly/2U0bhV8. Acessado em 20/03/2019.
3 Disponível em https://bit.ly/2TjFytC. Acessado em 20/032019.
4 Disponível em https://bit.ly/2M1A7NG. Acessado em 08/03/2019.

5Anteriormente o conceito de raça era carregado de um sentido biológico, que buscava definir diferenças objetivas entre as raças humanas. Os avanços de áreas como a genética a partir da segunda metade do século XX trouxeram evidências de que não existem diferenças biológicas entre as populações humanas que autorizem dividi-las em “raças”. Porém, a desconstrução da raça biológica não apaga a evidência da raça simbólica Cf. Pena & Birchal, (2006); D’adesky, (2005 apud ABRAHÃO & SOARES 2012

5 O trabalho intitulado “Os métis no Brasil”, de autoria de João Baptista de Lacerda, defendia que até 2012 a população brasileira seria composta por 80% de brancos, 17% de indígenas e 3% de mestiços, enquanto a raça negra teria desaparecido (SOUZA & SANTOS, 2012, p. 756).

Referências Bibliográficas ANDREWS, George Reid. Negros e Brancos em São Paulo. Tradução de Magda Lopes. São Paulo: Edusc, 1998.

AZEVEDO, Célia Maria Marinho de. Onda negra medo branco: o negro no imaginário das elites no século XIX. 3ª edição. São Paulo: Annablume, 2004.

JACINO, Ramatis. O negro no mercado de trabalho em São Paulo pós-Abolição – 1912/1920. Tese de Doutorado apresentada ao programa de Pós-Graduação em História Econômica da FFLCH/USP. São Paulo, 2012. Disponível em http://twixar.me/mcCn. Acessado em 20/06/2019.

PENA, S.D.J. ; BIRCHAL, T.S. A inexistência biológica versus a existência social de raças humanas: pode a ciência instruir o etos social. Revista USP, São Paulo, n. 68, pp. 10-21, 2005/2006. Disponível em http://twixar.me/B6LK. Acessado 30/03/2019.

SANTOS, Carlos José Ferreira dos. Nem tudo era italiano: São Paulo e a pobreza (1890-1915). 4ª edição. São Paulo: Annablume/Fapesp, 2017.

SCHWARCZ, Lilia K. Moritz. Uso e Abuso da Mestiçagem da Raça no Brasil: uma história das teorias raciais em finais do século XIX. In: Afro-Ásia, 18, 1996. Disponível
em http://twixar.me/r6LK. Acessado 20/07/2017.

SOUZA, Vanderlei Sebastião de; SANTOS, Ricardo Ventura. O Congresso Universal de Raças, Londres, 1911: contextos, temas e debates. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, v. 7, n. 3, p. 745-760, set.-dez. 2012. Disponível em http://twixar.me/66LK. Acessado em 29.03.2019.