Jongo no Rio de Janeiro: Resistência e preservação dos saberes

0
1604
 Suellen dançando Jongo Gabriela Moscardini 2015
Suellen dançando Jongo Gabriela Moscardini 2015

Por Gabriela Moscardini, Por dentro da África

“Eles nos engolem”, diz Suellen Tavares, uma jovem liderança jongueira que há alguns anos conheci.“Sou mulher, preta, gorda, lésbica, favelada e macumbeira”, foi assim que ela se apresentou. Nunca esqueci. Profissão: militante, artista, jongueira. Do exercício anterior como segurança de banco, hoje ela protege os saberes e tradições do Jongo, invisíveis e impossíveis de tocar – imaterial.

O Jongo é uma forma de expressão artística com raízes africanas, sobretudo, originada dos povos bantu. Negros escravizados da região centro-sul do continente, que hoje corresponde a países como Angola, República Democrática do Congo e Moçambique, foram os primeiros a desembarcar no Brasil no século XVI. Segundo pesquisa realizada por Yeda Pessoa de Castro, assessora técnica em Línguas Africanas do Museu de Língua Portuguesa em São Paulo, dos mais de quatro milhões de pessoas escravizadas trazidas da África Subsaariana, 75% eram de territórios bantu.

Da África para o Brasil, das fazendas escravocratas para as praças públicas

Nas lavouras de café e cana-de-açúcar do sudeste brasileiro, principalmente na região do Vale do Paraíba, as rodas se formavam como um grande círculo de comunicação e integração. A poesia codificada no Jongo por meio dos pontos permitia, ao toque do tambu (o maior dos tambores utilizados no jongo) e do candogueiro, um entendimento único entre eles. “Na minha fazenda, tem boi que sabe ler/ Na minha fazenda tem boi que sabe ler”, entoavam – e entoam.

Capatazes e senhores estavam em um grande limbo de ignorância: era impossível, para eles, compreender do que esses grupos falavam. A ancestralidade é reverenciada, os enigmas da natureza exaltados e a umbigada harmonicamente sincronizada em volta de uma grande fogueira sem hora para apagar construíam uma grande conversa musicada em que o assunto era a própria comunidade. Tambu, batuque, tambor, caxambu. Pai do samba. Sempre em uma dimensão marginal, o Jongo nasceu como resistência.

Séculos depois, no mapa do sudeste, cidades se ergueram em torno dessas lavouras. Segundo o dossiê publicado pelo Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico Artístico e Nacional) em 2007, a maior concentração de comunidades tradicionais jongueiras encontram-se no interior do estado do Rio de Janeiro, em regiões historicamente marcadas pela escravidão.

Suellen Tavares vive na capital do estado, no morro da Serrinha, em Madureira, zona oeste da cidade do Rio – mais uma das favelas que abriga  pessoas de diversas regiões que enxergaram na capital uma possibilidade de vida melhor. Ela faz parte do Jongo da Serrinha.

Jongo - Gabriela Moscardini 2014
Jongo – Gabriela Moscardini 2014

Segundo o Mapa de Cultura do Rio de Janeiro, produzido pela Petrobrás em parceria com a Secretaria de Cultura do Estado do Rio de Janeiro, a Serrinha é o grupo tradicional mais antigo da cidade, fundado há 60 anos pelo já falecido Mestre Darcy, por vovó Maria Joana e por Maria de Lourdes Mendes, a Tia Maria, hoje com 95 anos.

Saravá Jongueiro novo/ que veio pra aprender/ que deus dê a proteção/ à jongueiro velho/ para o jongo não morrer (Ponto de Ana Claudia Silva, Pinheiral)

Fazia bastante calor na tarde em que conversamos. Dentro da sala do Pontão de Cultura do Jongo/Caxambu, Programa de Extensão da Universidade Federal Fluminense (UFF), em atividade desde 2008 e com futuro incerto para o novo ano que se aproxima, Suellen narra sua trajetória com orgulho. A mesa grande, rodeada de cadeiras avisa que mais tarde haverá uma reunião. Os tambores, gentilmente colocados no canto da sala, sabem que em breve devem subir para o parapeito da janela. “Tem que cuidar do tambu, sem eles não têm Jongo”, já ouvi de jongueiros em outras ocasiões. Nas paredes, a importância em combater o racismo e de se mostrar representativo é evidente diante das imagens que fazem referência à identidade negra.

O Pontão do Jongo tem como objetivo ser um grande ponto de encontro mantenedor da cultura entre as comunidades tradicionais em um diálogo aberto e participativo com a universidade. Nasceu três anos após o Jongo do Sudeste ser proclamado patrimônio imaterial cultural brasileiro pelo Conselho Consultivo do Iphan e de ser certificado no ‘Livro das Formas de Expressão’.

Sob registro do processo de número 01450005763/2004-43, foi no dia 10 de novembro, mês da consciência negra, de 2005 que o Jongo foi reconhecido como patrimônio e “como expressão de grande importância para a manutenção da cultura brasileira”. No Dossiê do Iphan, publicado dois anos após o registro, isso “chama a atenção para a necessidade de políticas públicas que promovam a equidade econômica articulada com a pluralidade cultural; políticas que garantam a qualidade de vida e a cidadania”.  Mas, depois do extenso número de registro, vem o quê?

Jongo na Telha - Sara Ameijeiras 2016
Jongo na Telha – Sara Ameijeiras 2016

Agora todo mundo quer ser jongueiro Quem detém dos saberes do Jongo?

“Antes, esse jongo que eu faço – que é o jongo das comunidades tradicionais – ele só era feito no quintal da casa. Ninguém tava a fim de saber desse jongo! Aí o jongo ganha visibilidade, ganha o título de patrimônio, a universidade começa a pesquisar, aí tem o boom! Todo mundo agora quer ser jongueiro, quer ser mestre jongueiro”.

A preocupação de Suellen pode ser contabilizada. Desde 2005, cerca de dez novos grupos de jongo se formaram na capital e região metropolitana fluminense. Muitos não apresentam somente o jongo, mas também o coco, maracatu e tambor-de-crioula, por exemplo. O número de novos grupos pareia com os tradicionais catalogados pelo Iphan: no total, são 11 no estado do Rio de Janeiro. Entre eles, está o Jongo da Serrinha.

De acordo com o Decreto 6040 da Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais (PNPCT), os povos e comunidades tradicionais são “grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos gerados e transmitidos por tradição”.

 Jongo da Lapa Credito - Reprodução Facebook
Jongo da Lapa Credito – Reprodução Facebook

O Jongo da Lapa é um dos grupos com maior visibilidade na capital. Com apresentações mensais, os Arcos da Lapa são o cartão postal do Rio e o ponto de encontro do grupo que reúne nunca menos que 25 pessoas em cada roda. São pessoas que vieram, em geral, da universidade, de classes sociais e bairros diferentes, conta Marcos Bárbaro. Professor de educação física, ele hoje é uma das lideranças do grupo – que não é, segundo ele, artístico. Na conta, três CDs e um documentário. O grupo musical da Serrinha tem apenas dois discos solos.

“A cultura é mutante”, diz Bárbaro, e, assim como a cultura, a formação do Jongo da Lapa também foi sofrendo modificações até se tornar o que é hoje.  O coletivo, com o nome que possui atualmente, tem 8 anos, mas o grupo, desde o seu nascimento, já completa uma década. Na fundação original estavam outros membros que hoje possuem grupos diferentes ou seguiram novos caminhos. Pé de Chinelo, como era chamado antes, nasceu de uma outra roda de Jongo que acontecia na Lapa sem regularidade, organizada pelo falecido mestre Darcy, da Serrinha.

Assim como o Jongo da Lapa, outros grupos crescem e se consolidam a cada dia, se apresentam e ministram cursos e workshops de dança. O antropólogo da Universidade de Brasília, José Jorge de Carvalho, fala em seus textos sobre um fenômeno chamado na antropologia de mascarada. Ele funciona como o oposto da luta por ações afirmativas: “ao invés de ajudar a abrir espaços para os artistas negros, alguns jovens brancos estariam praticamente barrando-os da cena musical urbana e tentando ocupar o seu lugar, ainda que temporariamente – o que é duplamente problemático, pois aponta, além da encenação, para uma atitude de descartabilidade das tradições performáticas afro-brasileiras, como descartáveis e passageiros são todos os objetos de consumo”, escreve o antropólogo.

Estaria, então, o Jongo passando por um processo de ‘mascarada’ nas cidades? Para alguns líderes dos novos grupos, como Edgar Freitas, de 34 anos, representante do grupo Jongo na Telha e fundador do antigo Pé de Chinelo, a questão da apropriação cultural é um tema discutido com frequência nos encontros. Formado tanto por brancos quanto por negros, os grupos são liderados e comandados por uma maioria branca e com alto grau de escolaridade. “É uma preocupação, mas não podemos fazer Jongo porque somos brancos? Nós entendemos nosso limite. Temos brancos que já sofreram discriminação na roda. Mas é isso, a cultura negra está presente na nossa vida o tempo todo.”

Celebração do Dia Municipal do Jongo em Pinheiral Gabriela Moscardini 2014
Celebração do Dia Municipal do Jongo em Pinheiral Gabriela Moscardini 2014

Para Suellen, o nascimento dos novos grupos é tema central de discussão da Rede de Jovens Lideranças Jongueiras. A Rede nasceu em 2012, através da mobilização dos jovens que se encontravam nas reuniões de articulação dos mais velhos. Em 2015, durante uma reunião em Barra do Piraí, os jovens redigiram uma carta oficial que será publicada na íntegra no livro “A Rede” – coordenado pelo Pontão de Cultura do Jongo da UFF e em fase de produção – se posicionando em relação ao surgimento dos novos grupos.

“É muito fácil ir até a fonte e beber da água, o difícil é retornar e fazer com que a fonte permaneça sempre firme e forte, ajudar na manutenção de quem depende dela. Uma comunidade não se forma de uma hora para outra, é um processo na qual tivemos que nos adaptar e aprender. Fazer jongo não é simples como parece, ensinar o jongo também não é simples e fácil como se parece.” (…) “Gostaríamos que nossa cultura, ou melhor, nossa identidade, fosse transmitida de maneira certa na qual seja passada e mostrada as tradições e costumes do Jongo.” Trecho da carta. Assinaram jovens representantes de 15 comunidades jongueiras do Sudeste.

Reunião de Articulação da Juventude Jongueira em Dezembro de 2016 - foto Gabriela Moscardini
Reunião de Articulação da Juventude Jongueira em Dezembro de 2016 – foto Gabriela Moscardini

Suellen diz que esse tema, apesar de muito discutido, ainda não é consenso, principalmente entre os mais velhos. Para ela, o questionamento em torno do nascimento de novos grupos está na manutenção dos grupos tradicionais e, analisa que este é o momento de fortalecer as comunidades jongueiras já existentes, seja com suporte, seja com visibilidade. Ela lembra que a relação de poder entre esses novos grupos e os grupos tradicionais é grande: a localização, a escolaridade, a classe social. Contra a disputa do recurso, por exemplo, a chance de um novo grupo sair na frente é grande.

Minha raiz é negra / Veio de Angola distante (Ponto de Xande, Jongo de Pinheiral)

O patrimônio imaterial cultural brasileiro não é incolor. E, assim como na capoeira, o samba de roda, tambor de crioula, o fandango, o maracatu, e todas as outras mais diversas expressões e saberes catalogados como bens imateriais pelo Iphan (é possível conferir aqui a listagem oficial por Estado http://portal.iphan.gov.br/uploads/ckfinder/arquivos/Lista%20Bens%20Registrados%20por%20Estado.pdf), o Jongo também tem cor.

Praticado tradicionalmente por descendentes de negros escravizados, os grupos catalogados também possuem em sua formação negros. O Iphan, apesar de ter registrado e se comprometido com a salvaguarda do jongo, quando procurado, não soube identificar o perfil socioeconômico do jongueiro pois, em nota, “não possui uma pesquisa consolidada no assunto”. Em contraste com os novos grupos, segundo pesquisas do Centro Universitário Geraldo di Biase realizadas em 2014 com as principais lideranças das comunidades de Pinheiral e Barra do Piraí, situadas na região do Vale do Paraíba, apenas 30% dos jongueiros entrevistados possuíam ensino médio completo e a taxa de emprego variava entre 45 e 50%.  Todos se consideram pretos ou pardos.  Segundo relatórios dos encontros produzidos pelo Pontão da UFF, o perfil se repete nas demais comunidades.

Jongueiros do Vale do Paraíba celebram o Dia Municipal do Jongo em Pinheiral comemorado no dia 07 de abril]
Jongueiros do Vale do Paraíba celebram o Dia Municipal do Jongo em Pinheiral comemorado no dia 07 de abril]

Apesar de 53% dos brasileiros se declararem pretos ou pardos para a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) de 2014, é difícil encontrar estatísticas que revelem o contrário quando o assunto é vulnerabilidade social. Mesmo com o acesso de negros à universidade triplicado na última década (segundo o IBGE de 16,7% para 45,5%), a proporção dos estudantes de 18 a 24 anos pretos ou pardos que frequentam o ensino superior ainda não chegou ao mesmo nível que os jovens brancos tinham dez anos antes.

Segundo o Ipea, 7 de 10 famílias participantes do Bolsa Família são chefiadas por negros. O Atlas da Violência de 2017 nos mostra que as mortes no Brasil têm cor: a cada 100 pessoas assassinadas no Brasil, 71 são negras.  São os que mais morrem e os que também possuem a maior chance de morrer: a  recente estimativa do Ipea afirma que pessoas negras tem 23,5% mais chances de serem assassinados do que brancos no Rio de Janeiro. “A resistência nossa não é fazer uma roda mensal em algum lugar central, nossa forma de resistir é sobreviver.”, resume Suellen.

O boom que a jongueira de 28 anos da Serrinha comenta evidencia o potencial econômico do jongo. Em um artigo escrito em conjunto com o grupo Jongo na Telha, o economista cultural Luis Carlos Prestes Filho afirma que explorar o “pai do samba” permite que ele não só se mantenha vivo, mas que também se transforme em uma ferramenta capaz de levar desenvolvimento econômico para as comunidades.

O caminho parece fácil e certeiro, mas Suellen enfatiza: “Para quem está no interior do Estado, captar recursos é muito difícil. Não dá pra disputar com essa galera que é universitária, antenada.”, fazendo referência principalmente à redação de projetos para submeter em editais públicos e privados.

A inquietude dela não se resume em negar a existência dos novos grupos, formados por “universitários antenados”, mas em fazer com que entendam a importância da tradição jongueira como um traço própria da identidade e história negra.

Qual a relação de vocês com as comunidades? Questiono Bárbaro e Edgar nas nossas conversas telefônicas. Sem titubear, ambos respondem que foram nelas que aprenderam o que sabem hoje. “Beber da fonte”, como os jovens da Rede colocam na carta. É unânime a importância de manter as tradições vivas e respeitadas, “não começamos o Jongo, não vamos ser nós que vamos criar algo”, afirma Edgar. Para Suellen, eles já criaram. “Porque não chegar junto, construir junto, fortalecer as comunidades que já existem?”

José Jorge de Carvalho lembra que há caminhos a seguir com responsabilidade e o principal deles é “estabelecer uma ponte entre os valores e interesses do nosso mundo com os valores do mundo dos artistas populares”. Em nota, o Iphan comenta “que o surgimento de novos grupos de Jongo não acarreta a descontinuidade da manifestação cultural”.

Frente à fome pela cultura popular brasileira, há um grito que gera indigestão no meio da voracidade em que são devorados. Em maio de 1928, Oswald de Andrade escrevia o Manifesto Antropofágico.

Só a ANTROPOFAGIA nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente. Única lei do mundo. Expressão mascarada de todos os individualismos, de todos os coletivismos. De todas as religiões. De todos os tratados de paz. Tupi, or not tupi that is the question. Contra todas as catequeses. E contra a mãe dos Gracos. Só me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago.