África em cultura: Mapiko e os seus mistérios

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Mapiko - Moçambique
Mapiko – Moçambique – Arquivo Pessoal

Por Alcides Rafael Madeira Narciso, Por dentro da África 

Maputo – Por dentro da África estou e África sou em um mundo misterioso, caracterizado pela imagem do pôr do sol entre as montanhas e calmas ondas do Índico no sudeste do continente africano. Dentro desta pérola do Índico, te convido para viajarmos até o norte de Moçambique, para a província de Cabo Delgado, para juntos conhecermos e tentarmos compreender o mapiko como forma de arte para o seu povo.

Um makonde não se compreende apenas pelo mapiko, mas pela sua relação com o corpo. Falo das escarificações e tatuagens que constroem uma linguagem visual através da qual a pessoa pode comunicar e ter uma função mágica e sobrenatural. Os estigmas corporais que ajudam o indivíduo a construir uma identidade única e social, a preservação da sua identidade, como também a arte deste povo: cerâmica, máscaras traduzindo os seus anseios, usos e costumes e superstições, a estatuária e muitas outras formas de exteriorização cultural que elevam o nível de afetos e representações reais da natureza.

Tendo em conta que, nos tempos remotos, a distribuição deste povo obedecia às condições geográficas, os makonde constituíam o grupo mais numeroso de indivíduos em Cabo Delgado ocupando uma área extensa, cerca de 40.000km2.

Ao som de batuques acompanhado de cantos tradicionais, usando a força da sua história e do seu cotidiano, o mascarado misterioso dança o mapiko que, de certa forma, transmite, em cada passo, convicções que o ligam com as suas crenças – uma verdadeira representação dos diversos modos de ser e estar no mundo espiritual do povo makonde.

Isso é o mapiko em si! É dança, é arte, é teatro, é musica, é expressão corporal, é tradição. A aura de mistérios com que este povo realiza o ritual penso ser o combustível que move antropólogos e sociólogos com o seu espirito desmistificador para tentar estudar e compreender o que está por trás das máscaras e dos rituais pelos quais passam os praticantes do mapiko.

artesanato makonde
O lípico, singular de mapiko, é o nome da máscara ou do mascarado, palavra que só costuma ser usada quando é referida à máscara de madeira, ou ao próprio mascarado, tomado em si mesmo e não como símbolo da força transcendental que o mapiko representa. Uma vez que o mapiko é como um jogo interativo que consiste numa representação de vários espíritos personalizados na própria máscara.

O mais interessante é o fato de que o dançarino, ao vestir na pele a máscara, incorporar o seu espírito. Com efeito, muitos acreditam que é um espírito e não um homem que está debaixo da máscara (ISRAEL, 2005).

Nas imagens abaixo é possível observar que o dançarino está completamente coberto, com uma indumentária que esconde, totalmente, a sua identidade. A máscara de madeira cobre a cabeça e o pescoço, que tem uma única abertura: a boca da figura representada por onde o mascarado vê e respira, tendo assim um campo visual muito limitado.

Esses trajes são compostos por cinco peças de diferentes tecidos e ajustadas por uma corda ao corpo do jovem iniciado. Ao cobrir as costas e o peito, há uma malha, em corda, que sustenta vários chocalhos que, no decorrer da dança, provoca barulho. As pernas são tapadas por uma cobertura que se assemelha às meias e que vai desde os pés até à coxa.

Segundo a tradição dos makonde, o lipiko era um lihoka (defunto) que surgia da terra quando era invocado pelas vozes humanas e pelos tambores. Quando aparecia na aldeia, provocava medo em mulheres e crianças porque não percebiam que o lipiko era um elemento da comunidade, dado que este estava coberto com máscara panos e dançava longe do centro da aldeia.

Mapiko - Moçambique
Mapiko – Moçambique

Durante o mapiko a atividade é intensa e a atuação dos dançarinos é sempre esperada com ansiedade possuindo essa dança em toda a sua plenitude cênica, intenso caráter de aglutinação social. Em cada ritual desta dança, há vários dançarinos que dançam isolados ou em conjunto. Os cantores têm também a oportunidade de se exibirem.ura, mapiko

Na dança, existem vários passos que o dançarino executa, sempre em sintonia com a sonora e ritmada música dos tambores, apresentando uma espécie de encenação teatral, que encanta e diverte todos que assistem.

O coro é formado por um grupo de mulheres e homens, colocados frente a frente. No intervalo das atuações do dançarino, este grupo dança e canta cantigas provocatórias, desafiando e provocando os mascarados e os povos das aldeias vizinhas quando estão presentes.

A alegria dos presentes é notória. Após a dança, acontece uma encenação de perseguição e fuga. Dela, fazem parte e o dançarino e um grupo de aldeões. Observa-se esta alegria, desligada dos seus infortúnios sociais, participando nas danças e corridas como que transmitindo aos jovens a iniciativa, o seu apoio de grupo, como porto seguro e protetor.

Os tambores do mapiko
O mapiko é acompanhado por 5 tambores diferentes. Todos devem estar presentes para a realização desta dança, já que cada um tem a sua função. Os tambores representam um papel fundamental durante o ritual.

O corpo dos tambores pode ser em forma de cálice, em forma de almofariz, de espigão e ainda cilíndricos ou tubulares. O corpo de ressonância, em madeira, pode ser cavado de diferentes formas num tronco inteiro, fechado ou aberto do lado do chão, e do lado da boca tapado com uma pele de gazela ou de cabra.

A pele é normalmente fixada com fibras ou tiras de couro pregada com pregos de madeira, espinhos ou cavilhas. Quanto à decoração, o corpo dos tambores, apresenta gravações com motivos decorativos geométricos. Dançarinos de mapiko usam as costas para permitir acompanhar o som dos tambores. Em muitas danças estes chocalhos são presos às pernas e braços.
Os tocadores (músicos) são indivíduos respeitados entre a população, porém não atingem a dignidade dada, por exemplo, aos tocadores de tambores de Fenda na Guiné. Os chinganga, plural viganga, são pequenos tambores usados no ritual do mapiko. São instrumentos que acompanham e alternam o ritmo dos tambores durante a dança de mapiko.

Estes tambores têm quase o mesmo formato que o likuti, com a diferença de serem mais pequenos e com uma ponta aguçada, que é espetada no chão. Normalmente, são mais de sete, tocados simultaneamente e com a mesma cadência. São batidos com duas baquetas compridas. O likuti é um tambor pequeno em forma de cálice, que marca o início da dança. Inicialmente, é tocado com duas baquetas compridas e seguidamente tocado com as mãos, pelo mesmo tocador do ligoma.

O ligoma é feito a partir de um tronco cavado, aberto de um lado e com uma membrana de pele de animal na outra extremidade. O likuti e o ligoma são tambores tocados pelo mesmo músico que procura sincronizar as suas batidas,com os movimentos dos pés do mascarado.

O Neya ou Neha, um tambor mais alto e estreito, pode ter mais de um metro e meio de altura e é sempre tocado com as mãos, mantendo o músico de pé segurando o tambor entre os joelhos. É constituído por uma membrana de pele com cerca de 14,5 cm de diâmetro fixada no casco cilíndrico de madeira com mais ou menos 1,10 m de comprimento e tem uma base circular que serve de pé. Este tambor é que orienta e regula a cadência dos outros tambores como o Vinganga.

O ntoji é o tambor a quem cabe a responsabilidade de comandar os movimentos do dançarino “lipiko”. É mais curto e mais largo do que o Neya e fornece os tons graves da música. Por vezes, nesta panóplia de instrumentos, destaca-se a trompa, ou lipalapanda, usada para chamar o povo e criar sons dissonantes. No início do mapiko e sempre que os seus tocadores entendem ser necessário, os tambores são cuidadosamente afinados à fogueira.

Logo que os tambores começam, se junta ao terreiro da aldeia, formando um largo corredor, onde o mascarado dança com os músicos dispostos num extremo, e o outro aberto para a entrada do dançarino.

A dança foi, desde os princípios mais remotos, uma necessidade espontânea, seja como expressão natural da vibração física, seja como meio de exteriorizar as forças interiores da vida e impressionar ou influenciar o ambiente.

Tentamos interpretar o seu significado que, certamente, transcende a compreensão de quem somente teve a oportunidade de assistir a alguns rituais. O fio condutor dos rituais permite, todavia, referenciar sentimentos, afetos e autenticidades, talvez por influência geográfica, nos ambientes de festa, alegria e emotividade mais contidos no Maputo, talvez mais autênticos, exuberantes e expressivos em Cabo Delgado.

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