África no carnaval: História do ‘Alabê de Jerusalém’ será contada pela Viradouro

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Divulgação – Alabê de Jerusalém

Natalia da Luz, Por dentro da África

Rio – Há 2 mil anos, em Ifé (cidade localizada onde hoje é a Nigéria), berço das divindades africanas cultuadas no Brasil, nascia Ogundana, o Alabê de Jerusalém. Marcada pela convivência pacífica entre as religiões, a saga deste negro africano que voltou à Terra num terreiro de umbanda, será contada pela Unidos do Viradouro.

– Ogundana foi tomando conhecimento do que existia além do território iorubá e aos 12 anos ele deixou a família. Aprendeu a desenvolver a medicina tradicional africana, aprendeu com a medicina dos homens do deserto e, aos 23 anos, chegou ao Egito, onde aprendeu técnicas da mumificação. Ele curou um centurião romano e, em Roma, se tornou um curador da tropa romana! Atravessou o Mediterrâneo e conheceu uma judia, prima de Maria Madalena, e Jesus Cristo. Depois disso, ele foi viver em Jerusalém – sintetizou em entrevista ao Por dentro da África,  Altay Veloso, criador da ópera O Alabê de Jerusalém: a Saga de Ogundana, que inspirou o carnaval de 2016 da escola de samba de Niterói.

IMG_7094Filho de sacerdotisa de culto africano, Altay cresceu com o som dos tambores. No terreiro da mãe ou na casa da avó, que convivia com pessoas de diferentes religiões, o compositor experimentou a relação com o divino desde muito cedo. Essa vivência com a diferença permitiu que ele olhasse para as manifestações religiosas de maneira profunda, diferente.

– Foi quando eu comecei a escrever sobre os que conviviam com Jesus Cristo. De repente, me dei conta de que estava contando a história dos negros antes da escravidão nas Américas. Achei que era importante porque as pessoas aprendem muito pouco sobre África… É triste porque perdemos, pelo menos, 7 mil anos de história da África. África é uma civilização fabulosa, que é mostrada no espetáculo a partir da história desse negro nascido em Ifé.

ifeIfé é uma antiga cidade iorubá, no sudoeste da Nigéria, reconhecida pelos iorubás como a fonte mística do poder e da legitimidade: o lugar do qual partia a consagração espiritual e para aonde retornavam os restos mortais e as insígnias de todos os reis.

Como lembra o historiador Ademir Barros dos Santos, transposto o Atlântico, escravos de todas as cidades ficaram misturados na mesma senzala, dando a esta religião o formato que adquiriu aqui no Brasil, onde muitos orixás convivem no mesmo ilê, o que não acontece por lá. Ele conta que é por isso que chama a senzala de oficina de Exu, já que este é o orixá do movimento, da alteração, da renovação, do novo formato para coisas velhas, provocando, consequentemente, a melhoria e a evolução.

-Ifé é a capital religiosa do povo iorubá e, consequentemente, do candomblé desta nação, conforme se pratica em toda a diáspora africana. Todos os nossos orixás vêm daquela região, onde cada cidade é dedicada a um orixá específico e determinado; assim, por exemplo: Osogbô é terra de Oxum, Irê de Ogum, Oyó de Xangô, Ketu é terra de Oxossi – disse em entrevista ao Por dentro da África, o historiador autor do livro “África: nossa história, nossa gente”, completando que quem nasce em cada uma dessas cidades já é, por descendência, “filho” do orixá local.

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No carnaval, a África é fonte de inspiração. Ela está presente não apenas na Marquês de Sapucaí, mas nas avenidas do Brasil, nos enredos e cantos que falam sobre a história do continente que liga os dois lados do Atlântico, principalmente a partir da espiritualidade.

– A África é a origem do samba, do carnaval. Ela está sempre inserida. Na Viradouro, neste ano, vamos contar a história de um negro africano que sai da África para conviver com diferentes culturas e religiões. É a paixão de Cristo pela visão de um negro – aponta o carnavalesco Max Lopes em entrevista ao Por dentro da África.

Max detalha a história de Ogundana, lembrando que, espiritualmente, ele voltou à Terra como filho de Xangô (orixá dos raios, trovões e do fogo) e Ogum (na mitologia iorubá, é o senhor do ferro, da guerra, da agricultura e tecnologia). Durante a sua cruzada, ele conheceu uma judia e com ela trocou informações, inclusive religiosas. Foi quando o Alabê notou que as religiões tinham divergências, mas muitas semelhanças.

Divulgação – Alabê de Jerusalém – Quadra da Viradouro

A escola de Niterói que será mostrada por Max foi fundada em 1946 por Nélson dos Santos, conhecido como Jangada. Ela disputou os desfiles de Niterói por 39 anos (1947 a 1985). Após ser campeã niteroiense 18 vezes, a Viradouro foi para no Rio em 1986. Foi campeã do Grupo 2 em 1989 com o enredo “Mercadores e Mascates”. Com Dominguinhos do Estácio como intérprete de “Trevas, luz, a explosão do Universo”, a escola foi campeã do Grupo Especial do carnaval carioca. Um dos destaques daquele desfile foi a bateria ter tocado alguns compassos em ritmo de funk, sob o comando de Mestre Jorjão. Em 2015, a escola vai ensinar o público durante o desfile da sexta-feira do Grupo de acesso, um pouco sobre a história de Ogundana.

– Eu quis contar a história de um negro que não passou pelo processo de escravidão. Ele vem num terreiro de umbanda, numa linha de preto velho por conta da doçura, da gentileza do preto velho (entidades representadas pelos velhos africanos que viveram nas senzalas e que gostam de contar as histórias do tempo do cativeiro. Sábios, oferecem amor e fé aos “seus filhos”). Ele vem para matar a saudade desse planeta com uma grande preocupação: As religiões cumpriram bastante com o seu papel na humanidade, mas tiraram o amor – conta Altay.

Os orixás e a relação Brasil-África

Divulgação – Alabê de Jerusalém – Quadra da Viradouro

Ogundana era um alabê, que é conhecido como o homem dos tambores. Nos rituais religiosos afro-brasileiros, os alabês são os chefes dos tambores, aqueles que, a partir da musicalidade, ligam os dois mundos: o terreno e o espiritual. Altay conta que esse sincretismo que começou enquanto os escravos cruzavam o oceano, fez algumas associações, como João Batista que lembra Xangô, Maria que lembra Ogum e Jesus que lembra Oxalá.

-Precisamos olhar para o país e ter respeito pela nossa história, pela nossa formação. Os estereótipos dizem que o africano é de uma religião estranha, que o índio é preguiçoso… Há 127 anos não tem mais escravidão aqui, mas ainda aparece que tem negro que acabou de sair do navio negreiro. Temos que construir um novo mundo! Oxalá e Xangô moram aqui, eles migraram para construírem uma religião. Oxóssi é representado pelos índios, olha a nossa capacidade criativa!”

História no carnaval

O carnaval é um momento de aprendizado, é um momento de compartilhar conhecimento, cultura, história. É um trabalho árduo para quem escreve o samba-enredo e para o carnavalesco, que precisa retratar toda a história na avenida.

Divulgação – Alabê de Jerusalém – Quadra da Viradouro

– Eu não gosto de carnaval que pincela, eu gosto de uma história que tenha início, meio e fim. A música tem que ser descritiva. Eu talvez seja um purista nesse aspecto porque tem muita gente contando assunto, eu gosto de contar enredo, história – destacou o carnavalesco com mais de 35 anos de “Avenida”.

Conhecido como “Mago das Cores” e o único a obter a comanda maior de Imortal da Academia e Belas Artes, Max assistiu à “Ópera do Alabê de Jerusalém” e pediu para que Altay guardasse o tema para ser mostrado no carnaval.

– Eu vou abrir com África, partindo do Benim; depois, vamos para Egito. Na África, eu venho com cores mais neutras como o bege, marrom e o negro com um pouco de dourado. Seguindo pelo Egito, a escola terá mais azul-cobalto, azul-turquesa, branco e ouro! Roma vem com vermelho e branco. No final, vem o carro de Deus com branco e pombas. A cor ajuda a elucidar o enredo – disse o carnavalesco, com experiência em enredos religiosos como “Os10 mandamentos”, pela Mangueira; “As religiões”, na Imperatriz; “Os ciganos”, na Viradouro.

Num momento de tanta intolerância global, Altay, que já compôs mais de 300 músicas e foi convidado diversas vezes para tocar no festival de jazz de Montreal, propõe uma reflexão sobre quem somos em busca do afeto, referência de uma infância vivida em terreiro.

Divulgação – Alabê de Jerusalém – Quadra da Viradouro

Não há como igualar os homens em uma única fé. É mais bonito saber que Deus se manifesta de muitas formas e que em nenhum lugar ele está ausente. Como querer reverenciar as entidades do rio, se aqui há tão poucos rios, como poderiam acreditar que Iemanjá é rainha do mar se por aqui o mar é mar morto? Não. não há como agrupar os homens em uma única fé. Senão o que seria daqueles que não acreditam nas coisas que são intocáveis?, diz Altay recordando um trecho da ópera. 

 

Max acredita que o samba vem num momento para o povo brasileiro repensar; por isso, a Viradouro vai passar a mensagem de dizer “não” a todo tipo de intolerância.

– O Alabê vem contar a história de um batuque de tambor no terreiro de umbanda. Foi um chamado dos orixás que fala de amor, de tolerância, igualdade. Ele veio no batuque do tambor, e é como a Viradouro vem, batucando o tambor!