Literatura ajuda a entender como discursos de ódio levaram ao genocídio em Ruanda

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Scholastique Mukasonga – Divulgação

Narrativas de Scholastique Mukasonga mostram a ´construção` da engrenagem que levou aos assassinatos, há 25 anos.

Marcos Augusto Ferreira, Por dentro da África 

Ruanda, o país das mil colinas localizado na região dos Grandes Lagos na África, lembrou, em abril, os 25 anos do genocídio de 1994. Em menos de três meses daquele ano, forças do exército do governo hutu assassinaram tutsis e os considerados “hutus moderados”: os dados oficiais foram de 800 mil mortos. Os acontecimentos, no entanto, não se restringem a esse período e derrubam o velho clichê que normalmente carimba qualquer conflito no continente africano como “guerra étnica”.

O que ocorreu há um quarto de século foi a face mais trágica de tantas outras violências amparadas por discursos de ódio construídos ao longo de décadas, diluídos no cotidiano, tanto pelo aval do colonialismo europeu até meados do século XX, quanto pelo oportunismo político de lideranças mundiais, regionais e locais, além da inexplicável paralisia da Organização das Nações Unidas (ONU) e da omissão (quando não conivência) das missões religiosas. A soma desses fatores criou e estimulou diferenças étnicas, segregação, desarticulação familiar e assassinatos, inclusive entre parentes, vizinhos e amigos. Como fosse pouco, um misto de inoperância e falta de reconhecimento internacional paralisaram também os organismos internacionais que demoraram a agir pela reconstrução do país.

No momento em que discursos de ódio multiplicam-se e são banalizados nas redes sociais, a literatura de Scholastique Mukasonga oferece boa dimensão de como atos e omissões cotidianos – atitudes muitas vezes corriqueiras que parecem “nada ter a ver” com política, xenofobia ou preconceito – podem criar um monstro. Sobrevivente do massacre, a escritora, que vive na França, é importante referência para aqueles que querem penetrar no universo ruandês pré-1994 e perceber como transformações sociais e questões identitárias inventadas forjaram, décadas antes, a engrenagem do genocídio.

Da autora, há três obras interessantíssimas traduzidas no Brasil: ´Baratas` (2018/original de 2006), ´A mulher de pés descalços` e ´Nossa Senhora do Nilo` (2017/originais de 2008 e 2012, respectivamente) – todas da Editora Nós.

As narrativas fluem como histórias contatadas em uma roda de conversa: ora ficção com base em fatos verídicos, ora a realidade que, de tão cruel, parece surreal, impensável até pelo mais apaixonado ficcionista. Scholastique narra o convívio familiar, as tradições, a vida em comunidade, as relações de amizades, o universo escolar, enfim, o dia a dia que aos poucos se despedaça em razão do clima de ódio, até o ponto em que é preciso escolher quem vai fugir do país, deixando a família para trás, e quem fica para morrer. Vale dizer que, não raro, o assassino era um vizinho ou conhecido que precisava demonstrar sua ´essência hutu` e evitar, assim, a própria morte.

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Baratas (inyenzi, em kinyarwanda) era a classificação pejorativa dada aos tutsis, motivo pelo qual deveriam ser exterminados. Na obra que leva esse título, por exemplo, ao fazer um relato autobiográfico, desde a infância até o retorno ao país, em 2004, a autora mostra como, já no final dos anos 1950, tem a infância tumultuada (nasceu em 1956) por problemas políticos que só se agravariam. Vale ressaltar que, em 1959, Ruanda era governada por uma monarquia tutsi, com apoio dos belgas e da Igreja Católica. Esses mesmos apoiadores mudaram de posição e passaram a sustentar a “revolução social” dos hutus, o que incluiu assassinatos de tutsis e a proclamação da República, em 1961. Atos violentos prosseguiram.

“Meu pai não era um aristocrata, dono de grandes rebanhos de vacas, como alguns imaginam serem os tutsis. Mas sabia ler e escrever, e aprendeu o suaíli, língua usada pela administração colonial”, escreve ela em ´Baratas`. Em função desse trabalho, a família, que vivia em uma região de floresta, com terras férteis, foi para outra província, Butare.

Cena do filme Hotel Ruanda – Divulgação

Em 1962, Ruanda declarou-se independente, as tensões e perseguições aos tutsis aumentam. A família foi obrigada a ir para uma região distante, próximo à fronteira com o Burundi. “Não sei quando meus pais se deram conta de que tinham sido deportados para Nyamata, em Bugesera. Bugesera! O nome tinha algo de sinistro para todos os ruandeses. Era uma savana quase desabitada, moradia de grandes animais selvagens, infestada pela mosca tsé-tsé. Dizia-se que o rei exilava para lá os chefes caídos em desgraça. Logo também percebemos que não éramos os primeiros tutsis a serem deslocados para Nyamata”, relata.

No início da década de 1970, há um golpe de Estado, acelerando a engrenagem para 1994. Um documento de identidade distingue hutus de tutsis. Tutsis perdem o direito de frequentar o curso secundário e são perseguidos e humilhados pelos próprios colegas de estudo: “Alexia, André e eu tínhamos tido o azar de ir à escola. Devíamos partir para o Burundi. Ruanda passara a ser perigosa demais para nós. Se conseguíramos escapar dessa vez, iam acabar nos matando. Talvez amanhã”, escreve Scholastique – apenas ela e André partiram; Alexia escolheu ficar com os pais e outros irmãos. “Tínhamos sido escolhidos para sobreviver”.

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A banalização do discurso de ódio no ambiente escolar, aliás, é o tema de ´Nossa Senhora do Nilo`, nome do liceu para meninas localizado próximo a nascentes do rio Nilo, no alto de uma montanha. Estar nas alturas tem menos a ver com “estar perto do céu”, mas sim com a necessidade de manter as meninas longe das “tentações da cidade”. O objetivo é “formar a elite feminina de Ruanda”, preparando-as para “bons casamentos”. As internas são “filhas de ministros, militares de alta patente, ricos comerciantes”. Na maioria, hutus, pois as tutsis são aceitas apenas em função de uma política de cotas, cujo objetivo é muito mais estigmatizar e excluir do que incluir.

Até mesmo o nariz da estátua da Virgem – “pequeno e reto, como o nariz dos tutsis” – transforma-se em argumento para justificar perseguições, violência e assassinato. “Naquela época os brancos e missionários ficavam do lado dos tutsis. Assim, ter uma Virgem negra com um nariz tutsi era bom para eles”, comenta uma das personagens. “Não quero mais rezar para uma estátua que tem um nariz de tutsi”, complementa a amiga, ressaltando que é necessário dar uma face “verdadeira” de ruandesa à estátua, “um nariz do povo majoritário” (os hutus).

Refugiada no Burundi, Scholastique Mukasonga conseguiu formar-se como assistente social e seu irmão André, médico. Mais tarde, a irmã se juntou a ela. Ambas chegaram a voltar para Ruanda, clandestinamente, mas pouco tempo puderam ficar na casa dos pais, pois colocavam em risco a vida de toda família. Em 1986, já casada com um francês e mãe de dois filhos, Scholastique voltou para visitar os pais: “Eu era francesa. No meu passaporte, a embaixada de Ruanda tinha colocado um visto nos moldes adequados. Entrei em casa como estrangeira, sem dúvida, mas ao menos fui pela estrada principal”, narra em ´Baratas`.

Mesmo assim, a estadia foi encurtada. O medo de colocar a família em risco não havia sumido. Foi a última vez que viu os pais, alguns dos irmãos e sobrinhos. “No dia seguinte, pegamos a estrada do Burundi. Revejo minha mãe na beira da pista, sua silhueta frágil envolvida em sua canga. É a última imagem que guardei dela, uma pequena silhueta que se apaga na curva da estrada.”

Stefania, a mãe da autora, é a personagem central do belíssimo ´A mulher de pés descalços`. O livro nada tem daquelas homenagens repletas de adjetivos clichês que beiram a pieguice. A narrativa não apaga as belezas e sujidades de um cotidiano permeado pela tensão e atrocidades. Os afazeres diários, os costumes, as brincadeiras ocorrem, cada vez mais, sob a sombra do medo. Ao homenagear a mãe, Scholastique Mukasonga mostra, sobretudo, a força das mulheres nas sociedades africanas. No caso específico de Ruanda, não apenas pelo trabalho diário em casa e no campo, mas também pelo símbolo de dignidade e proteção que representam para os filhos – antes, durante e depois do genocídio.

“Sempre vi minha mãe com a enxada na mão revirando a terra, semeando, capinando e colhendo, isso antes do nosso exílio, em Gikongoro, em Magi ou, por força maior, em Nyamata, nos vilarejos dos deportados. Acontece que em Ruanda, os trabalhos no campo nunca terminam. Se tivesse que encontrar um começo para aquilo que não tem começo nem fim, diria eu que esses trabalhos começam com as primeiras chuvas de outubro, quando se planta feijão e milho. Depois, eles serão colhidos, um em dezembro, outro em fevereiro; em seguida, vem a estação de chuvas, de março a maio, em que se semeia o sorgo que será colhido em julho, no começo da estação seca. Mas, durante esse tempo, também se cultiva feijão, batata-doce, eleusine, taro, abóbora, inhame, mandioca e, sobretudo, bananas, que pedem um cuidado ininterrupto. As ruandesas como Stefania, e como as de hoje em dia, sejam elas hutus ou tutsis, não dedicam todo o tempo a trançar esses delicados cestinhos que ficam uns dentro dos outros e que, muitas vezes, são vistos pelos turistas como a atividade principal da mulher ruandesa”, escreve em ´A mulher de pés descalços`. É um trecho do Capítulo IV – O Sorgo.

A cada capítulo, a autora destaca a importância de um gesto, um hábito, alimento, utensílio ou tradição da vida em comunidade, sempre sob a ótica feminina. Às mulheres cabia, ainda, a educação dos filhos. Os homens cuidavam da justiça e dos negócios da comunidade. O pai de Scholastique, por exemplo, “fazia parte do grupo de sábios”, aqueles que resolviam os litígios, conduziam as negociações “difíceis com o líder da comunidade, o prefeito, os agrônomos, os missionários…”

Durante o genocídio de 1994, muitas mulheres foram estupradas por portadores do HIV. Aquelas que sobreviveram, além de sofrerem com a cruel lembrança, enfrentaram o estigma de “portadoras da morte”, eram rejeitadas na sociedade. “Contudo, foi nelas, nelas próprias e nos filhos nascidos do estupro que essas mulheres encontraram uma fonte viva de coragem e a força para sobreviver e desafiar o projeto dos seus assassinos. A Ruanda de hoje é o país das Mães-coragem”, escreve a autora em ´A Mulher de Pés Descalços`.

Scholastique Mukasonga registra 37 familiares assassinados durante os ataques de 1994: pais, irmãos, cunhados e sobrinhos. No regresso a Ruanda, dez anos depois, ela ainda “contava e recontava”, insistindo, ao lado do irmão André, a “fazer a chamada dos nossos mortos”, como relata em ´Baratas`. Sabia que jamais recuperaria os corpos. “Os assassinos quiseram apagar até suas lembranças, mas no caderno escolar que nunca me deixa, registro seus nomes, e não tenho pelos meus e por todos aqueles que pereceram em Nyamata, nada além deste túmulo de papel.”

Mais sobre Ruanda – Ruanda, atualmente, é governada por Paul Kagame, que em 1994 liderava a Frente Patriótica Ruandesa (RPF), força tutsi responsável pela interrupção dos ataques hutus. Kagame promoveu a recuperação econômica do país e deu início à difícil tarefa da reconciliação. Em 2015, aprovou medida constitucional que possibilita a permanência no comando até 2034; em 2017, foi reeleito para mais sete anos de mandato. As marcas do genocídio ainda persistem, mas há força econômica e movimentos sociais na luta pela recuperação plena do país. Para saber mais sobre a história do genocídio, indico ´Gostaríamos de informá-los de que amanhã seremos mortos com nossas famílias`, do jornalista norte-americano Philip Gourevitch (Companhia de Bolso/Cia. das Letras, 2006), e ´O país das Mil Colinas`, da brasileira Andréia Terzariol Couto (Appris, 2013).